terça-feira, 5 de julho de 2011

texto 41 - c. l. r. (lâminas / iluminuras)


 c. l. r. 
(lâminas / iluminuras)

texto 41

alcino mikael filho


quando o garçom trouxe a taça de sorvete que terminava em calda de caramelo, castanhas, biscoitos e cerejas, respirou aliviada. era uma figura humana, não havia mais dúvidas, que podia dar-se ao luxo de ter um companheiro – ele vestia uma bermuda larga, camiseta sem mangas e sandálias rasas – que a levava ao clube para um drinque em meigo dia. escolhera sorvete porque sorvete sempre lhe parecera uma impossibilidade. derramar garganta abaixo tantos sabores, tanta fartura, tantas cores curvas! bem na verdade, sentia um pouco de nojo de coisa tão viva, mas não tinha que se comprometer com a vida? não tinha que se limpar em suas próprias gorduras? estava com o cabelo muito curto – cabeça nua, espírito cheio de palavras cruas, escreveu numa noite em que sonhou ser, não sabia bem, medéia, a medusa -  o que, de certa forma, era uma traição aos modos das meninas, por isso muito ser esforçava para ser feminina! ele não gostaria de uma ou outra covinha, de doces curavas? falava de um livro que seria bom que ela lesse, quando, quase em lágrimas, tomou consciência de sua tragédia. a cadeira em que estava sentada, perto da piscina era muito alta para uma moça nanica! os pés não chegavam ao chão, os seus braços eram curtos demais para que suas mãos tocassem a colher do sorvete que derretia sem que tivesse provado de suas coléricas delícias! vendo-se numa fria – a vida não era mesmo coisa viável, era uma ferida que sempre se abria, na frente de qualquer um, até mesmo diante do homem que a espremia, diante do sol que comia as sombras que os protegiam! tentou o sorriso, como se, ao acompanhar o raciocínio do que ele falava, houvesse se esquecido do sorvete e por isso desmanchava, virava água na vasilha. ser mulher, ser coisa humana, implicava tantos suplícios! quando voltasse para casa – sim, estava programado – , vingar-se-ia de quem o choro que nela mordia impedira. podia pedir-lhe licença para ir ao toalete, mas chegar até o outro lado do mundo com pernas diminutas, sendo observada por gente que passava em traje de banho, com copos nas mãos lívidas! quando se lembrou que dali visitariam a avó dele quase desmaiou. era uma mentira que no mundo não cabia, dissera ao homem que visitava no consultório, que as suas cantigas entupidas ouvia, mas ali, ao lado do moço gordo que a comovia, tinha que aguentar calada a tortura que lhe ocorria. se pelo menos tivesse pedido um drinque que a deixasse relaxada, tranquila! para que tanto golpe da vida?, perguntou-se entristecida. fora até ele com planos de mostrar-lhe que era uma moça desembaraçada, esportiva, e ali estava, uma anã doendo na volta do dia! nem mesmo ele poderia salvá-la das arapucas que sempre acabava erguendo em volta de seu espírito tecido longe da alegria? quando finalmente conseguiu tocar na taça o sorvete era bebida. um último golpe? a mão, depois do hercúleo esforço, que levara à massa derretida, começou a escorrer rumo à piscina!

MIKAEL FILHO, Alcino. c.l.r. (lâminas/ iluminuras). São Paulo: Nativa, 2002.