segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

LINHA DE PASSE



Rafael Martins
(Crônica de Cinema
dezembro de 2009)


Quando vi um filme do Walter Salles pela primeira vez, ainda não morava em Rio Pardo. Foi em 2001. Eu e um saudoso amigo, após sairmos do cinema, caminhamos por três quadras sem dizer palavra alguma até começarmos a falar sobre o que assistimos como quem discutisse poesia. Abril Despedaçado não poderia ser outra coisa senão poesia.

Oito anos depois, sou obrigado a ver Linha de Passe, a parceria mais recente entre Walter Salles e Daniela Thomas, na sala de estar.

Linha de Passe é uma expressão do futebol, e acontece quando um jogador toca a bola para o outro, que por sua vez a devolve, sem que ela toque o chão. O título representa muito bem o que seria o filme, o drama pessoal de cada personagem interligado pela câmera.

Linha de Passe não possui a poesia explicita de Abril Despedaçado. Sua poesia reside no seu lado inverso, por se aproximar da linguagem do documentário. Como diz a própria Daniela Thomas, em entrevista contida nos extras do DVD, é “a ficção com ganas, com inveja da realidade. A ficção que se quer realidade”. Sua fotografia e preparação dos atores comprovam isto. Vinícius de Oliveira, por exemplo, para interpretar o rapaz que pretende ser um jogador de futebol profissional, precisou treinar nas categorias de base de equipes profissionais.  João Baldasserine, para interpretar o motoboy chamado Denis, vivenciou durante algum tempo a experiência de guiar uma moto no trânsito perigoso de São Paulo. Para Zé Geraldo Rodrigues, o Dinho, representar um evangélico, foi necessário frequentar igrejas evangélicas.  Kaique de Jesus Santos, o menino Reginaldo que vive a procura do pai, antes do filme, nem pensava em ser ator profissional. Para completar, Sandra Corveloni, a empregada doméstica Cleusa, grávida e mãe destes outros personagens, com seu rosto marcado pela vida, foi tão convincente a ponto de ganhar a Palma de Ouro em Cannes, melhor atriz.

Algo muito forte aproxima Linha de Passe ao Central do Brasil, outra obra de Walter Salles. Se no primeiro nós vemos Cleusa, no segundo encontramos Dora, interpretação de Fernanda Montenegro que lhe rendeu o Urso de Prata. Ambos retratam mulheres não poupadas pelo tempo e o lugar onde vivem. O próprio Vinícius de Oliveira, o menino de Central, agora parece irreconhecível, mais velho e sofrido. É claro que o trabalho das filmagens colabora para tanto. Existe um esforço para retratar pessoas comuns e não heróis feitos de mármore.

A lente do diretor tem buscado obsessivamente estes exilados de lugar nenhum. Exilados que podem morar aqui, na periferia de nossa cidade, ou no sertão do país, ou num lugar da grande São Paulo chamado Cidade Líder.

Talvez o formato de DVD não comporte tudo o que este filme e seus antecessores queiram dizer. Há detalhes que só a grande tela expõe de modo satisfatório. A trilha sonora discreta, a fotografia com poucos tratamentos, a veracidade dos passeios de moto, os cultos evangélicos, as partidas de futebol, tal conjunto consegue dar a obra, ironicamente, uma beleza quase invisível.

Quem comparar o subtítulo do filme (“A vida é o que você faz dela”) ao desfecho que ele mostrar, como dizem no futebol, poderá ficar com a sensação de um empate com sabor de derrota. Eu prefiro o contrário.


DEMÉTRIO



Getulio Cardozo
(Crônica)

Nesse caso de nada adiantaria referências convencionais como sexo, cor da pele, nacionalidade, etc. É mais ou menos como aquele texto que não é conto, não é crônica, não é poesia, “mas tem alguma coisa ali” – você diz. Nunca irão saber quem foi Demétrio descobrindo o seu caderno de escola, o dia do seu aniversário, quem foram seus pais ou que veio a falecer sete meses depois do julgamento numa prisão... Aliás, Demétrio não morreu e nem poderia. A namorada diante do juiz que presidia o júri disse que Demétrio era um sonho e em prantos completou:

- Esqueçam esse homem, pois ele não existe!
        
O advogado de defesa poderia muito bem aproximar-se dos jurados, apontar o dedo para o réu e dizer:
        
- Esse é o falso Demétrio!
                 
Ninguém naquele momento poderia invalidar aquele argumento, pois todos ali deviam estar perguntando em que planeta acontecia essas coisas.
        
Mas quem era o peitudo para questionar o doutor Isidoro, criminalista que pôs debaixo dos sapatos os maiores promotores, que conhecia todos os labirintos do judiciário e todos os estilos de suborno.
        
E o crime foram algumas fotografias. É muito difícil montar as peças desse caso para escrever uma crônica, uma reportagem, pois tudo se espatifa quando se aproxima de Demétrio. Nem pense em chamar o psiquiatra, o médium, o astrólogo, o filósofo, pois não se sairão bem nesse ramo. A própria sentença que o condenou pode ser um lance de dados. Bobagem mergulhar a fundo, pois não vai se sair do outro lado.
        
Como o advogado omitiu da defesa a inexistência de Demétrio e até deu ênfase à sua presença, ele passou a existir nos autos de um processo-crime, na jurisprudência, nas conversas dos magistrados. O que mais chama atenção no processo são as fotografias das mulheres nuas e todas pousando alegremente para o cruel assassino. A morte não intimida nenhuma delas, mesmo que venha pelo fio da navalha. Elas nada têm a ver com aqueles laudos técnicos, relatórios, oitivas de testemunhas. O laço da lógica não alcança o bailado dessas meninas.

Demétrio teve uma ambição desmedida em suas fotografias, ultrapassou as fronteiras dessa vida com sua arte. Chegou muito perto do que fotografou e assim as imagens se dissiparam. Pode parecer exagero, mas nunca a matéria foi tão crua. Por Deus que a ilusão foi desfeita naquelas lentes. Para galgar essas alturas utilizou de um realismo que atropelou a própria arte.

Ele não cabia naquela pequena classe média e não podemos aceitar que o chefe do correio fora seu pai, o aposentado do Banco do Brasil o seu tio, o empresário de cabelos grisalhos e óculos escuros seu parente distante.
        
Mas os crimes, o tribunal, os boatos, as perícias, vieram dar alguma consistência naquilo que era para ser ficção. Talvez isso explique a existência das coisas, as origens do bem e do mal. O importante para nós é que se estabeleceu um consenso de que Demétrio existia e que deveria ser condenado por seus crimes. E essa foi a estratégia usada pela defesa, para levar à vertigem quem estivesse no salão do júri, para tumultuar os caminhos da reta razão, para jogar a ética na privada, para dar uma banana para acusação. Porque todos foram convencidos pela namoradinha de Demétrio que ele não existia, suas lágrimas foi um apelo muito forte:
        
- Amor...! Diga a eles que você não existe!
     

domingo, 30 de janeiro de 2011

POR UMA HISTORIOGRAFIA ATIVA





Maycon Alves



Nossa historiografia, caprichosa em sua narrativa, não soube percorrer nos estreitos e intrincados caminhos que compõem a trama social. Percorreu ela, numa volta rompante, a superfície frágil e insustentável daquilo que damos o nome de história. E, neste seu percurso, não hesitou em amaciar as abóbadas de três ou quatro pares de famílias imprimindo-lhes o que nunca foram: fundadores. 
  
Percebe-se que este discurso ornamental de tradição européia, possibilitou – junto de uma conjuntura econômica, cultural e política – para que houvesse uma manutenção no distanciamento da população frente a sua participação nos desígnios políticos da cidade. Diante desta população de baixo nível econômico, que tirava seu sustento da lavoura, carentes do suporte público em todas as esferas e espoliada pela elite corrupta e calhorda que guiava a vida política da cidade, a aceitação deste discurso vertical, também disseminado pela imprensa local, foi e continua a ser a salvação duma vertente histórica construída e mantida por segmentos da elite nativa.

Assim sendo, penso que a grande contribuição daqueles que pretenderem desenvolver um sério estudo histórico sobre Mococa, devam, além de enxergar a história em sua “totalidade”, também desenvolver uma crítica demolidora às entidades que carregam o codinome de fundadores, no sentido de desorganizar e transpor o enredo monolítico, traiçoeiro e negligente. Traiçoeiro porque muitos já o absorveram, mesmo se dizendo formados na “melhor das  universidades”; e negligente porque sempre foi negligente para com a história “vista de baixo”.


Maycon Alves é historiador

sábado, 29 de janeiro de 2011

TULIPA RUIZ e ELIS REGINA - Black Is Beautiful em dose dupla

A composição é de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle. As interpretações são de Tulipa Ruiz e Elis Regina.




TULIPA RUIZ - A revelação da MPB de 2010


Ricardinho Sales
 

Pra quem não conhece, posto aqui o MySpace, o Blog pessoal e o Canal na Trama Virtual, para facilitar o acesso. Vale a pena conhecer o álbum Efêmera, considerado pela crítica especializada o melhor álbum de MPB de 2010.
 
Uma voz doce e sensível, um dengo delicioso, uma levada meio caribenha, a mineira é uma mistura bem bacana na cena musical contemporânea. A menina vem de linhagem nobre; É filha do lendário Luiz Chagas, primeiro guitarrista do Isca De Policia de Itamar Assunção. É ilustradora, compositora e desenhista, participou de shows de nomes como DonaZica, Trash Pour 4, Júnio Barreto, Ortinho, Projeto Cru, Na Roda, Tiê, Nhocuné Soul e Cérebro Eletrônico. Integra, ao lado do pai Luiz Chagas e do irmão Gustavo Ruiz o conjunto Pochete Set. Faz desenhos para livros infantis, agendas, capas de discos e cartazes de shows. Interessa-se por gravações em campo, texturas, ruídos, bordados e cantigas de ninar.

Autora de músicas com letras bem interessantes e modernas, como "Pedrinho", que tem uma letra com malícia na medida certa, inteligente, com classe e sem duplo sentido (Fugidinha é mesmo uma porcaria), Há ainda ""A ordem das árvores", uma levada de baixo suingada, dessas que quando você ouve se percebe balançando a cabeça pros lados, uma letra que remete ao poeta Manoel de Barros, ou seja, uma poesia do mato que toca a nossa alma caipira. Vale destacar ainda "Da menina", um belíssimo retrato da adolescente se descobrindo diante do espelho, num jazz brasileiro. A faixa-título "Efêmera" (Veja o vídeo  abaixo), que também abre o álbum, é daquelas que se ouve quando se está triste, pra animar, e serve também pra ouvir abraçadinho, no carro, beijando na boca. Em suma, essa mulher com nome de flor é simplesmente sensacional. Vale a pena gastar os 45 minutos de duração do disco com ela.


Resenha musical de Ricardinho Sales originalmente publicada em seu blog. (http://viveremfesta.blogspot.com/) 
O Margem Plural recomenda a visita.



quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

DE UM JORNAL SÉRIO


      Maycon Alves



saiu ontem
na primeira pagina do jornal:

“cientistas
da Universidade de Pittsburgh
concluem pesquisa
de doze anos
alertando para o perigo
do xixi das baleias
na poluição do atlântico norte”


A FÁBULA DO REI CHIBANTE



Edson Luiz da Silveira


Ao trono, um Rei sustém sobre vestes e almofadas de esmeraldas
Um principezinho ainda bebê.
A cena é paternal.
Todos os súditos em silêncio. Até mesmo dom Vlastos, o bobo oficial,
Quedara-se silencioso, rosto livre da facécia, como se ouvisse um chamado.
O Rei, olhar grave, inclinado para o filho, por um momento deixa de
Pensar em armas, tesouros, traições.
O olhar do Rei está mesmo diferente, pleno de ternura nunca vista na corte.
A cena avança minutos.
Mamadeira à mão e ao colo o futuro reizinho, que, qual ave faminta,
Acoplado e protegido nos joelhos da majestade,
Fixa seu olharzinho ávido de bezerro por onde
Os muros da fome. 


Edison Luiz da Silveira é poeta, artista plástico e professor. Mestre pela PUC de São Paulo, atualmente leciona Literatura Portuguesa e Literatura Infanto-juvenil na Faculdade Euclides da Cunha, em São José do Rio Pardo.
Os poemas A Fábula do Rei Chibante e Primeira Lição Filosófica compõem o livro E eu que nem sonhava..., ainda inédito. O Margem Plural tem a honra de apresentá-los em primeira mão e aguarda a data e o local de lançamento da obra para convidar seus leitores.

PRIMEIRA LIÇÃO FILOSÓFICA



Edson Luiz da Silveira




Dimitri: Vamos, papai?

Pai: Vamos ver...Antropofagia.

Dimitri: (Pensando, pensando...) Lembrei. É assim:

Antes que a religião me jante, eu almoço ela.

Pai: (Risos). Vamos pra segunda então...

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

TRADUÇÕES EM NANQUIM


Getulio Cardozo compôs as seguintes ilustrações inspirado na novela O Recado do Morro, de Guimarães Rosa.

Ilustração a nanquim por Getulio Cardozo (série O Recado do Morro)

Ilustração a nanquim por Getulio Cardozo (série O Recado do Morro)

Ilustração a nanquim por Getulio Cardozo (série O Recado do Morro)

DÚVIDA DE FIM DE SEMANA


Maycon Alves

não sei se devo
enfiar o dedo
em sua
boceta
hoje
ou
amanhã 

não sei se levo
guarda-chuva
ou
guarda-sol

não sei se corto
a tampa da laraja
ou
as amígdalas

e não sei se torro
este dinheiro (agora)
ou
se espero
a redução dos juros
no mercado financeiro
e aplico
no setor
“deslizamento de terra”

                                
Maycon Alves é metalurgico no prelo da mais-valia

sábado, 22 de janeiro de 2011

FERRÉZ, O CRONISTA DE UM TEMPO RUIM


Rafael Martins
 
É difícil definir Ferréz enquanto escritor. Dizer que seus textos possuem um estilo seco e ágil seria afirmar uma verdade, mas reduziria a complexidade do seu ofício.

Engajado em dar voz à classe a qual pertence, sua caminhada transcende a atividade literária. Cito, como exemplo, a visita que fez a cidade de Mococa em novembro de 2010, no dia da Consciência Negra. Além de suas viagens pelo imenso “Brasil periferia” (termo que ele mesmo usa), o autor desenvolve projetos sociais em algumas localidades da cidade de São Paulo, inclusive no Capão Redondo, bairro onde vive até hoje.

É como se em Ferréz a face do ativista social se fundisse à do escritor. Impossível esboçar-lhe o perfil com a primeira parte dissociada da outra. Seus romances “Capão Pecado” e “Manual Prático do Ódio” descrevem, com realismo, um mundo amplo e complexo, que muitas vezes o próprio morador da periferia não entende, embora faça parte dele.

Outra oportunidade de também aproximar-se do autor é obra o “Cronista de um Tempo Ruim”. Trata-se de uma compilação de crônicas publicadas em jornais e revistas. Dentre as revistas está a “Caros Amigos”, onde escreveu por dez anos. Ao observar-se com mais atenção estes textos, tem-se noção da visão aguda do escritor em relação ao meio que o cerca.

Podemos comprovar a afirmação anterior ao lermos a crônica “SPPCC”. Nela Ferréz antecipou aos seus leitores, de forma incisiva, os acontecimentos que pararam São Paulo em maio de 2006, quando o PCC e a polícia se confrontaram. E, ao Governador, ele emitiu o alerta: “Cuidado com a bandeira, dr. Geraldo, de olho na presidência e não olhando nitidamente para ela, você pode acordar um dia e ler: SPPCC”. E aqui vale questionar-se se os doutores em geografia humana que escrevem para os grandes jornais do Estado também tiveram a percepção do que estaria por vir.

Já a ocorrência do episódio antevisto ficou registrada em “Meu Dia na Guerra (ou: vamos atirar nos entregadores de pizza)”, crônica que denuncia não apenas o confronto entre membros da facção com policiais, mas chacinas de pessoas inocentes e outras mortes gratuitas de trabalhadores que retornavam para suas casas.

“Caixinhas, todos somos separados em caixinhas, mas a pergunta é: quem embala tudo isso?” O “Cronista de um Tempo Ruim” foi lançando em 2009, entretanto, depois de vermos o “filme” do combate ao tráfico no Rio de Janeiro exibido pelas grandes emissoras de televisão e que teve início em novembro de 2010, poderíamos recorrer à mesma pergunta. Ninguém viu os inflamados comentaristas das mesmas emissoras questionarem-se a respeito. Aqueles que “embalaram tudo isso” não tiveram suas mansões invadidas nem pelo BOPE nem pelas câmeras de TV.

Encontramos dor, pessimismo e denúncia nas crônicas de Ferréz, mas também beleza e esperança contrastando com a tragicidade. São relatos de sua caminhada com amigos (alguns ficaram pelo caminho), o prazer de ler Hermann Hesse, ou até mesmo a aventura de se construir uma biblioteca onde se parecia impossível.

Num primeiro contato, a literatura de Ferréz pode causar certo estranhamento ao leitor acostumado com a cartilha das academias. De fato, talvez nem seja esta a intenção do autor, pois seu objetivo é escrever àqueles que de alguma forma estão à margem do “grande mercado”. E se seus livros rompem fronteiras bairristas, chegando ao ponto de serem traduzidos para outras línguas, é porque o autor tem coisas relevantes a dizer.  Acrescente-se a sua arte a isto.




Ilustração a nanquim por Getulio Cardozo



Artigo e ilustração publicados no jornal Democrata (São José do Rio Pardo, 22 de janeiro de 2011).
A ilustração é de Getulio Cardozo, que gentilmente autorizou sua publicação.

sábado, 15 de janeiro de 2011

LEMBRANDO SAMPA

Ricardinho Sales

Quando eu chego
a lágrima escorre
  lembro
  o muito de ti
         que há em mim

já na Marginal
       vejo as luzes
  e recordo
      nossa antiga parceria
      repousa no ser

parti daí
  pra cá que estou
   saudades sinto
   mas sempre vou
        e nunca esqueço

as nossas mazelas
tão nossas tretas
essa coisa doida
         e doída
   ferida aberta

te quero pra sempre
dentro de mim
berço onde nasci
mas não posso nunca
deixar pra trás

essa outra raiz
minha matriz
caipira província
que também
me contém

e nesse duplo vou além

 
06/11/10

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

SONETILHO


 Rafael Martins (poema)
Getulio Cardozo (ilustração)

Vim escrever teu poema,
Zé, meu manco arlequim.
Onde teu riso de bílis?
teus gestos de madeira?

De Mococa a Milagres
vim rever essa quinta,
ver o teu cafezal,
a tua ausência que per-

passa lá pelos fundos
e ao resvalar num galho
um pequeno sol negro
se despenca até o chão

e faz doer o silêncio
às seis horas da tarde.

Ilustração à nanquim por Getulio Cardozo


O INTRUSO


Rafael Martins
Uma da matina
Boulevard
sorrisos refletidos
em olhares turvos
e você (morto
há quatro anos)
falando agora
através da minha boca
sem que ninguém o saiba.




A VISITA


Rafael Martins (poema)
Getulio Cardozo (ilustração)

O sol negro de tua presença iluminou
a sala do sonho
ao invadi-la
quando eu não te esperava

sem pronunciar palavras
sentados face a face
conversávamos

e como se caminhássemos de costas
estradas pastos casebres
aos poucos
iam se recompondo diante de nós

 sozinho
acordado em meio às trevas
já não posso perguntar-te
de onde surgiste
e para onde voltarias

e não importa

em frente ao espelho
(luzes acesas)
  verifico que
no fundo do meu olhar
um sol negro rebrilha ainda.

ilustração à nanquim por Getulio Cardozo

O NOVO HERÓI BRASILEIRO


Ricardinho Sales


Ele mostrou ao povo o que é ser humano, na maior acepção do termo. Mostrou à elite mesquinha que há mais ainda que se partilhar. Calou as oposições, (FH tá mordido de inveja) cativou o cidadão comum e os banqueiros do Fórum Econômico. Levou nosso nome pra todo o mundo valorizando nossa marca, nosso ser, nosso proceder. Achou petróleo (batizado com seu nome), proporcionou melhorias educacionais, sociais, culturais, matou vários coelhos com pauladas simples, mas bem aplicadas; fez sorrir a todos, mesmo os que o contrariavam; fez de si um personagem de si mesmo, mas a personificação da alma brasileira: Foi maior do que todos os que o antecederam, será maior por todo o sempre, outro (ou outra) não surgirá tão cedo, por várias gerações de nossa história vindoura. Nossos filhos, netos e bisnetos não terão o privilégio de não apenas ver, mas sentir um governante tão presente no dia-a-dia, com tantas transformações, realizações e fazendo tanto, com ações tão simples, mas tão esperadas. Proporcionar aos pobres universidade, luz, comida, carro novo, casa própria, crédito, poder de consumo, diminuir a desigualdade (tanto que a classe média é ressentida com ele, afinal de contas, quem mandou tratar pobre como gente?), lutar por gerar empregos apenas fortificando nossa indústria, (a Petrobrás é a 5ª empresa do planeta, mas faltou re-estatizar a Vale) sem baixar a cabeça pro capital estrangeiro e, no estrangeiro, falar de igual pra igual com os maiorais, liderando a expansão do G-8 pra G-20, começar um processo de paz com o Irã, até então um problema mundial, que resolveu com alguns minutos de conversa franca e honesta, açambarcando respeito e dignidade nunca antes vistos em nossos história com um governante tupiniquim. Tanto que os figurões do Conselho de Segurança da ONU ficaram bicudos e vetaram o acordo com o mesmo Irã.

Com seu carisma, toca a alma e o coração do povo. Um povo que lhe é devoto, não por subserviência, mas por gratidão. Ele arranca lágrimas minhas e de muitos outros irmãos brasileiros vez ou outra, não por raiva ou revolta, mas por emoção, devoção, de nos fazer sentir privilegiados por receber tão digno e tão cativante líder, que defendeu nosso país e nos tornou protagonistas mundiais de nosso destino. Hoje, temos orgulho de ser brasileiros, pois sabemos (e repito, sentimos) um país mais justo, moderno, crescente, forte, pujante. Uma terra próspera, mais rica, mais pronta, mais soberana e em franco progresso.

Não usou capas nem cueca por fora da calça. Não lança teias nem tem  garras de metal. Não precisa de raios laser nem raio nenhum. Apenas ousou existir, de peito aberto, cabeça erguida e conciliando aqui e ali, já que, sim, tem uma lábia poderosa. Mas usada para o bem-estar social que hoje vemos. Não conseguiu fazer tudo o que se queria dele, mas fez demais, e do mínimo que éramos nos levou ao patamar máximo, vide a sua popularidade nesse final de governo. Ao redor do mundo, não há governante tão bem-avaliado. 87% não é pra qualquer um. E os governantes do mundo todo pagam pau pra essa popularidade imensa, da qual não usurpou. Se quisesse, fazia um plebiscito sobre o terceiro mandato e ganharia fácil, fácil. Depois faria um quarto, um quinto, uma ditadurazinha (palavras dele), mas preferiu não brincar com a democracia, de uma república que sabe que está, hoje, aos seus pés.

O cara sem pose, na humildade, sabendo chegar e que ninguém quer que saia. Esse perfil marcou nossa rotina. Era também o presidente do espetáculo, sim, com um pouco de maldade da minha parte, deu aos brasileiros muito pão, mas com Dilma vai faltar circo. E deixa um legado que pra mim é o melhor: deixou a classe média ressentida. Hoje, o pobre pode o que só ela podia. Hoje o pobre entra onde só eles entravam, compra o que só eles conseguiam, consome o que só eles tinham condição de consumir. E eles o-d-e-i-a-m essa parte. Pegaram asco de Lula porque nosso guia fez pobre virar gente. Hoje, pobre não se submete mais a qualquer coisa. Tem lugar que tá difícil arranjar empregada, faxina e porteiro porque o pobre hoje ascendeu e, quando aceita, põe condições e preços justos, confiantes e de cabeça erguida. A classe média não aceita isso. E lê a “Veja”, assiste a “Globo” pra alimentar mais o ódio. Por isso queriam Lula fora. Adora ver a cara de “nojinho” da elite pálida e mesquinha. Hoje os pobres frequentam até os clubes do interior, antes restritos ao pessoal criado à base de leite ninho.

Cometeu erros, mas quem não os comete? Soube contorná-los e deles tirar lições. Entre eles, o de conseguir a Copa e as Olimpíadas. Vai sobrar dinheiro pra muito corrupto por causa disso, e o Brasil podia deixar pra depois. Talvez a Copa pra 2018, e as Olimpíadas pra 2020, seria o ideal. Agora ainda tá meio cedo, mas ele não é de perder oportunidade.

Fez a sua sucessora e, por maior bem que ela faça, qualquer escorregada o fantasma do criador irá pairar sobre a criatura. E o povo não tardará a clamar novamente por seu nome, Lula.

Lula, o grande mestre da política, sai do poder com toda a gratidão de um povo que, sob sua regência, se tornou orgulhoso, forte, autoconfiante e grato, que o admira e se emociona com o líder que ousou, em tempos de competição e individualismos, olhar de igual pra igual pra todos, em todo o lugar.

Dias atrás, eu via o jornal na TV e minha filha de 10 anos me acompanhava. Ela falava comigo. Lula apareceu, eu pedi pra que ela parasse pra ouvirmos juntos. Ela me perguntou por que eu prestava tanta atenção em Lula, eu retruquei que ele era o meu herói. Nossos olhares se encontraram, meus olhos marejavam, ela entendeu e me abraçou, dizendo que eu tinha razão: “ele faz a gente ter orgulho, né, papai....” E me abraçou. Tive a certeza que estava certo no que eu disse. Luther King, Gandhi, Lennon, Bento Gonçalves, Che Guevara, Bob Marley, Tupac Shakur, Zumbi, João Cândido, Chico Mendes, Lula faz parte desse panteão. Dos grandes líderes que, cada um ao seu jeito, revolucionaram seu entorno e adjacências.

Ao contrário de outros presidentes, Lula é o único que deixará saudades. E não será sem razão. E, sim, ele será sempre o meu herói preferido.

Ricardinho Sales é diretor de teatro, poeta e educador.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

O CADÁVER DE DEDALUS


Getulio Cardozo

É o que aquele doido do irmão mais novo dizia: nas carnes podres de Dedalus nasciam rubras plantinhas. Nos pés do cadáver filamentos brilhantes que ofuscavam seus olhos. Não era caso de se pensar, pois o irmão era doidinho mesmo. Aos doze anos ainda não aprendera a ler e acordava assustado gritando: “a vovó! A vovó!” Aquilo sim dava medo, pois a avó falecera há poucos meses. Mas Dedalus nunca ouvira falar nesse sujeito, nem ninguém conhecia. A psicóloga sacudia a cabeça sorrindo e dizia para eles se acalmarem, pois o tratamento ia bem, era preciso paciência.

Pelo que dava a entender do que o irmão dizia os pêlos do corpo do defunto transformavam-se em plantinhas, em filamentos mergulhados no limbo e o seu sono era uma espécie de lodo, um mergulho apenas na morte, uma emoção forte ao transcender o tempo. Era o que a moça escrevia com rapidez em seu diário, como se a caneta fosse uma esfera ou animal que fosse cagando tinta na folha em branco. E ele repetia com os olhos fixos no chão, escancarando a boca, procurando um ritmo para descrever os filamentos de ouro, como se de dentro de si viesse alguém implorando para chegar até a moça e suplicar a ela que olhasse por um instante, olhasse, e depois estendesse as mãos até onde os pêlos cresciam e deixasse ali o seu hálito, seu êxtase, sem nenhum peso ou interdição, sem que o pecado a afugentasse  ou provocasse medo. A irmã fingia de tola e perguntava se Dedalus aparecia no espelho, pois no fundo ela sentia medo, ainda mais que a mãe dava aulas e só chegava onze da noite. Às vezes demorava até mais tarde. Ela ficava vendo TV para não pensar nessas coisas. Ouvia ruídos na casa, mas sabia que era um gato ou qualquer outra coisa. Era tudo invenção da cabeça dele.
           
Uma tarde resolveu averiguar o porão da casa. Sabia que era bobagem ( completara dezoito anos dois meses atrás ), mas não custava nada verificar. Mesmo porque... sua mão ficaria totalmente livre para escrever. Sentia vontade de se descuidar, de aviltar a rotina da casa. Apenas um lençol velho protegia seu corpo. Soltara os cabelos. Permitindo assim que Dedalus também se soltasse daquelas cordas da morte, do grande poder que fere de morte o corpo. Talvez a solidão, o fato de estar um pouco deprimida, levava ela a pensar essas coisas - assim pensava. Não se divertia como as outras meninas, nem tivera tempo de namorar, pois tinha que olhar o irmão. No fundo sentia-se injustiçada, levando uma vida que não pedira a Deus. A mãe havia se separado do pai há quase dois anos e desde então falava pouco, quase não parava em casa. Dizia que não aguentava mais viver naquela casa e só não mudava porque moravam perto do centro.

No diário as palavras falavam por ela, escapavam por entre as brechas do pecado, como plantas, fios de ouro, pêlos. E aquele ser intangível falava de um único dia, pois tudo ali começara e terminara. A mão de Dinha – era esse o seu nome para os íntimos – tinha desejos, odores, movia-se como um peixe, um peixe circulando uma ilha, desfrutando do banquete que é o seu próprio corpo ou o corpo de Circe, Penélope e...de repente mordisca a mão de Dinha afeita a lavar louças, pegar na vassoura, limpar a bunda do irmão, mas no vasto oceano não se distingue um corpo e uma ilha, não devido a cegueira, mas devido a embriagues do vinho, o manto de Ulisses nos olhos, tontura do amor de Penélope, o reflexo das galáxias na vastidão do grande oceano, e por isso a mão de Dinha procurava aqueles pêlos em meio ao azul e o amarelo ouro, o manto para estender atrás de si e realçar a sua nudez, mas temia pois ali estava o varal de arame com as roupas molhadas, o porão, o gato, o sol tão forte, ela mesma estava ali, ela que precisava de um namorado logo, havia até comentado isso com a mãe que sempre lacônica respondia “é mesmo...” Mesmo as palavras eram seres vivos, incômodos, como a mãe, tão sensíveis as preocupações diárias... E ela não tinha o que oferecer, nenhum banquete, nem vinho, a imensa multidão numa grande cidade qualquer alvoroçava-se como um formigueiro, como ela nem pedia nada, tecendo seu manto para o tempo passar, fio a fio o tempo passava, no trabalho insano das formigas, lavar, passar, dormir e se o grande mar estava ali, se Circe estava ali, eram cegos, cegos, tudo breu, apenas quando um corpo apodrecia, desfazia-se em bruma, em filamentos de ouro que brotavam na ilha aos pés de Circe, pontilhava de luz a cara do navegador, apenas quando sua alma deixava-se levar por Circe e o olho preso por uma linha numa folha caia na água ou ela, Dinha, perdia a consciência para virar um inseto azul, aí sim, mas havia a força de gravidade da terra, os seus sapatos presos ao chão, o cérebro tão pequeno, a voz tão distinta com as pessoas, ela tão educada, comedida nos gestos, caminhando com cuidado à noite para não despertar o irmão, sem malícia, “menina pura”- diziam algumas pessoas – realmente, realmente. Nunca teve um namorado. Quase nem aparece na janela. Menina meiga. Tão cândida com Circe, temerosa do mar, cuidadosa com aqueles fios de ouro, namoradinha de Ulisses, princezinha.


Conto de Getulio Cardozo, que gentilmente autorizou sua publicação no Margem Plural.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O CINEMA DE MEUS OLHOS


 Rafael Martins

Até mesmo alguns dos leitores de Vinícius de Moraes ignoram que o autor de poemas e músicas memoráveis teve uma relação intensa com o cinema. Hoje, boa parte desta relação se encontra registrada num livro que leva o nome de “O Cinema de Meus Olhos”. Trata-se de uma compilação de crônicas sobre a sétima arte, escritas para alguns jornais nas décadas de 40 e 50.

Lendo estas crônicas percebe-se que seu autor não era um crítico no sentido restrito da palavra. Vinícius não era um tecnicista quando abordava o assunto. Na verdade, olhava a grande tela mais como poeta do que crítico. Ao escrever sobre cinema o que lhe interessava era guiar os olhos do espectador, ensiná-lo a olhar.

Entretanto, o fato de ver cinema mais como poeta do que como crítico, não lhe supria o desejo de conhecer a fundo como se faz filmes. Quando o já consagrado Orson Wells visitou o Brasil com o intuito de filmar um documentário, o poeta acabou se tornando seu amigo, acompanhando-o, inclusive, em suas filmagens.

Nesta ocasião, Vinícius de Moraes, ao elogiar “Cidadão Kane”, disse que Orson Wells foi “o único que soube dar ao som um valor exclusivamente cinematográfico”. Para ele o cineasta realizou, “sonoramente, o ideal da imagem muda.” A princípio o norte-americano não havia concordado com a opinião do brasileiro. Vinicius foi um grande defensor do cinema silencioso em detrimento do cinema sonoro. Tal posicionamento o levou a promover um debate de proporção nacional em torno do tema. Naquela época, o cinema sonoro estava mais do que consolidado. Abraçar uma causa perdida, como neste caso, apenas comprovou sua coragem e seu caráter quixotesco.

Talvez seja essa uma das razões pela qual admirava Charles Chaplin de modo inquestionável. O personagem Carlitos sintetizava-lhe tudo o que se espera do ser humano diante do absurdo da vida contemporânea. Em “O Cinema de Meus Olhos”, encontramos um número substancial de crônicas a contemplar Chaplin, que, para ele, foi o maior artista do século XX. Só para o filme “Luzes da Cidade”, por exemplo, são três crônicas dedicadas.

Mas sua paixão pelo cinema não se restringia apenas ao ambiente de Hollywood. Foi um grande entusiasta da produção nacional, apesar dos seus defeitos que, pela época, eram até compreensíveis. Dentro deste contexto, vale salientar a sua admiração por Grande Otelo, a ponto de considerá-lo o melhor ator brasileiro de seu tempo. Em um de seus textos, confessa que, se o Grande Otelo concordasse, gostaria muito de ser seu amigo. Vinícius era assim, admirava os mais simples e queria-lhes a amizade. Era capaz de notar o ser humano tanto em um brasileiro como Otelo quanto em um estadunidense como Orson Wells.

Sabe-se que sua paixão pelas mulheres foi outra marca profunda em sua trajetória. No cinema, tal não podia se dar de modo diferente. Algumas de suas crônicas são verdadeiros poemas em louvor da beleza de seletas atrizes. Sobre Greta Garbo, era capaz de dizer coisas do tipo: “é uma mulher-sumidouro, sem a menor dúvida, uma mulher-orquídea, de condição fatal”.  Sobre Paulette Goddard: “é mulher de perseguir um homem até vê-lo na maior baixeza, fazê-lo fingir que está doente para não deixar ela ir às festas, ou então cair no álcool.”

Na época em que escrevia sobre cinema, Hollywood começava a mostrar suas garras. Eram filmes e mais filmes feitos a toque de caixa, como acontece hoje, sem o mínimo de respeito ao espectador. Uma das qualidades de Vinícius era ser honesto consigo e com os outros acerca de suas paixões, e dele não poderia se esperar algo diferente senão críticas. Suas críticas contundentes à Hollywood fizeram com que os distribuidores de filmes ameaçassem retirar seus anúncios publicitários do jornal “A Manhã”, em que o cronista trabalhava, caso ele não fosse afastado. De fato, conseguiram o que queriam. Mas por pouco tempo. Até ele retornar a outro jornal. Zombava de Hollywood com o melhor dos humores.  Vinícius opunha-se ao sistema à maneira de Carlitos.


Artigo  publicado no jornal Democrata (São José do Rio Pardo, 23 de janeiro de 2010).