segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

ANOTÓRIO


Primeira parte da novela ANOTÓRIO, que tem como pano de fundo os anos da ditadura no Brasil.
 
 Getulio Cardozo
Veio gritando no meio das moscas escreva com tinta do pau com que se tingem panos, daquele divino pau que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da igreja, não se sabe com que designo empreendemos a viagem, são terras incógnitas e precisamos deixar a carcaça, procurar sob a terra os cascos, a poeira e debaixo de dois ou três lençóis de terra estão as ferraduras, onde o mundo inicia num veio d’água, onde se chega de cueca, mas não de van ou Kombi, já foi dito alhures em verso que a viagem aqui é ao contrário, por outro fuso, pois como preleciona Montepalau “O verdadeiro tigre só há no anti-mundo”. Faça pois a graça de depor sem estar descorçoado, não entregando nunca a quem estiver atrás do refletor os seus cabedais, lembre-se que você é homem mas também rio, nas serranias desfaz dessa carga e já é fêmea, requebra debaixo de uma saia curtinha, pega aquele caminhão da caçamba e vai ver como é bom o cheiro de estrada, ficou pra trás encaixotados os incômodos seus, aquele focinho e aquele pensamento besta metido em sua cabeça desde a adolescência, qualquer hora ia matar um por causa daquilo, que fazia você puxar Leila pelo braço com aquela rispidez, tropeçando no que encontrava na frente, gritando quando o portão emperrava.
Não consegue mais dar uma de peão nem tem aquele chute que derrubava trave de gol, por isso imagina que o azar te acompanha, que o delegado Fleury confiscou os seus mantimentos, que ouviu o assobio do capitão Lamarca, mas isso é porque está em outro fuso e nem recorda o que foi obrado em seu corpo nem do capuz enfiado em sua cabeça, a luz do refletor indo te chamar de madrugada, a estupidez de um tempo te chamando da rua, momento houve que chegou a pensar que veio para celebrar o seu casamento e depois chorou muito achando que Leila havia ido embora no metrô numa noite de garoa, igual àquela noite debaixo da luz do poste quando você achou lindo os olhos de Leila, as sobrancelhas dela eram perfeitas, você nem podia acreditar que era amado por mulher tão linda, isso porque você ainda é nascente de rio, o seu corpo ainda é de taipa.
Veio escondido debaixo do encerado do caminhão e não sai daí de jeito nenhum. Botou na cabeça que o capitão Ubirajara vai te levar pro DOI-CODI, que chegou a hora da verdade, que daqui a pouco vai num micro-ônibus a caminho do presídio Tiradentes. Vai, enterra o Geisel e o Buzaid! Diga de uma vez pro Rodolfo Konder quem é você! Não sabe? Não tem mais congresso da UNE em Ibiúna... Mas se ouvir o barulho de uma matraca não diga nada, cubra-se com um papelão ou finja que está rezando para chover. Não dê também atenção à barulhada das meninas com os animais na grota, frouxou de tudo ali, vale no chão, sobre arranha-gato, do jeito que vier vai. Barulhada mesmo vai ser quando você chegar à conexão, aquilo que dão nome de primeira leitura, uma coisa bem tosca, moço de classe média rangendo pneus, musculação, troca de apartamentos, festinhas, filarmônica tocando na inauguração de imobiliária. Logo-logo vai se aborrecer, mandar pro diabo contrato de financiamento, caminhar solitário pelos arredores onde tem mato, tirar a tampa duma lata de lixo e cuspir a família lá no fundo, mijar em cima de raiva, vai pedir pro fogo subir do chão, gritar do alto do barranco pro pessoal de Gaza “põe fogo em tudo”, pois é com ferro que a coisa funciona, vai apagar a luz da casa e nem querer olhar pra trás, como já fizeram aqueles que estão chegando pela rodovia Arthur Bernardes, ninguém paga um centavo de conta, não pica cartão, não senta na mesa pra almoçar, mulher não esfrega chão mais, rompeu a comporta disse um moleque passando apressado com um cãozinho latindo atrás.
Não é lata e nem ruído no telhado, é palavra. Palavra na hora em que o telefone foi desligado “Leila, amor...Alô!Alô!” O verbo que você pediu emprestado ao silêncio na hora em que Fleury apareceu com o ventilador ligado e disse que ia ser um vento tão forte que ia acabar o mundo. E Fleury alertou que as nuvens estavam se formando, rasgou a camisa e bateu no peito berrando que era ciclone, que ali era uma terra sem Deus, por isso tudo seria revelado, o último selo aberto, ai de quem mentisse, ai de quem escondesse o verbo debaixo de uma lata.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

OUTRO LADO DE UMA REVOLUÇÃO


Edson Luiz da Silveira

Labéu da minha vida foi ter nascido mulher. Segunda filha nonata numa família de nobres. Ser nobre, naquela época (século XVIII francês), era nascer com pescoço predestinado pro corte. Meu pai, pego em emboscada, foi o primeiro nobre a perder a cabeça. Vímo-la rolando, escada abaixo, indo bater num cachorro, debaixo de uma chuva de apupos de uma turba enraivada. Depois, acabei descobrindo: meu irmão, meu único irmão entregara nosso pai; meu irmão... Olhos claros, sonhadores e gananciosos, mas que foi também levado ao cadafalso, um mês depois, após uma reunião secreta com Danton e Robespierre. Pobre irmão, a vaidade fê-lo perder a vida. Restamos eu e minha mãe. Poupadas, talvez, pela piedade cristã de monsieur Sanson (o carrasco maior). Seguramos até onde podíamos; então começamos a vender as jóias, as peles, os móveis. Como ela chorava! Minha mãe foi definhando dia a dia. Os amigos todos sumiram e a comida era escassa. Confiscaram nosso castelo, nossa herança avoenga. Oh! Quanta angústia na alma! Passamos a viver de favores, tendo ainda, ó Deus!, que suportar, aterrorizadas, os assédios de alguns asseclas do nosso sistema. A pressão se tornava insuportável. Até que vi minha mãe – matrona ainda de estirpe – levada pela fome e pelo desespero, se deitando junto ao nosso algoz mor, para, na manhã seguinte, ser encontrada sem vida, degolada com o próprio punhal com que tentara, num gozo convulso, vingar a morte do filho. Decidida a matar ou morrer, me tornei, então, uma clandestina dentro do meu próprio país. Vivia me esgueirando. Escondia durante os dias e, à noite, disputava restos de alimentos, com cães e aves, ao longo do rio Sena. Enquanto isso, jorrava, abundante, o sangue azul. Todos os meus, velhos e jovens e crianças rechonchudas e coradas, todos eles, jaziam mortos, insepultos numa vala dispéptica. Então eu enlouquecia. Como um verme à margem do tempo. Passei a ter sonhos horríveis: acordava sobressaltada, gritando e com medo de ser capturada e morta. Em alguns deles, eu era uma pintura, híbrido de colagem e tintas com bocas e pernas e olhos deformados; fragmentada como uma pintura cubista. Em outros, virava madeira: mulher esculpida à força de goiva e enxó, entre mãos luxuriosas e serpentes e livros e príncipes decadentes. Suava. Entre urros e desmaios. Então, sem forças e quase uma fera, fui capturada e vendida ao mercador de escravas. Tornei-me sua amante entre tantas; contraí sífilis, tive os olhos arrancados para que não tentasse fugir. Hoje, grávida, doente, cega e destruída, sento-me aqui, neste trono, sangue azul, nós, demônios da Revolução...  Por favor, entre, venha me ver nos meus sonhos. 


Segundo o próprio autor, esta história lhe surgiu enquanto esculpia uma senhorita na madeira. Figura nobre para uma época pobre.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

DOMINICAL


                                                                                      
                                                                               Rafael Martins
 

Setembro desfolhou a navalha
por outubro sustentada rente à garganta

Até aqui venho com a alma cansada
de seu corpo a corpo com a vida

Os mortos que nunca partiram
insistem em ficar
sussurram nas sombras
no avesso
da tumultuada primavera

Alguns vivos
ainda que por amor
querem meu sangue
- dissimulado em rosas?
  transmutado em bílis?

Por ora caminhando
sobre o branco inferno convulso de domingo
ao lado de meu cão
que nada me pese mais
do que a violência azul deste céu


REVOLUÇÃO

Ilustração a nanquim por Getulio Cardozo

MÚMIA DO EGITO


Ilustração a nanquim por Getulio Cardozo


terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

UM HOMEM COMUM



Ricardinho Sales


Viu-se no espelho da repartição antes de ir para casa e encanou consigo. Foi numas, mas estava naquelas. De se encontrar, e percebeu que os procedimentos dispensavam-no da persignação que fazia no instante. E por esse mesmo instante, parou e refletiu: onde? Estava a preocupar-se, mas não sabia o que iria achar, nem onde queria chegar. E qual a necessidade disso.

Foi quando se deu conta que tudo aquilo, de repente, era meio ilógico: sabia, um passado existia e nele se continha. Recordou-se de seus recalques e seus pudores e sentiu, assim, um medo que batizou logo de receio: não era um medo leve, mas um certo eufemismo a essas alturas seria pra lá de conveniente. Daí veio o insight: onde foi que me perdi? Em qual dado momento, considerando um fator x, levando-se em conta que qualquer coisa que existe é >0 e <∞ (maior que zero e menor que o infinito), observando-se as somas e os produtos dos meios sendo sempre maiores que as subtrações ou quocientes (independentes de restos ou diferenças), e recordando que a vida dá tantas voltas quanto à espiral de DNA inerente a si, cuja qual lhe permitia, entre outras coisas, não ser uma hiena banguela, uma ameba king-size ou um orangotango manco, onde raios foi se deixar?

As respostas vinham num turbilhão que periplava em sua massa cinzenta. Havia várias opções, era um teste de múltipla escolha com, talvez, todas certas as respostas; totalmente meio-certas; absolutamente meio-erradas; e a clássica n.d.a. Chateou-se com tal prelúdio de dúvidas essenciais, pois sentia que eram realmente essenciais para que respondesse as questões existenciais posteriores. A priori, a ciência de si é difícil e demanda uma sinceridade imparcial, dessas que ferem e magoam por prazos indefinidos. E, pensando bem, pra que se preocupar com isso agora? Mas, no caminho para casa, enquanto andava, deveria pensar em algo. Fez então uma varredura mental e percebeu: há tempos não fazia um balanço e, como faltava um bom trecho pra chegar em casa, voltou ao ponto de partida: Onde? Quando? Por quê? Pra quê? Quem? Como?

Agora iria até o fim.

Teria sido no início da vida, na porralouquice da adolescência, afoito em viver e experimentar, impulsivo e cheio das razões absolutas que só a imaturidade traz, a busca por novas sensações, todas essas coisas que implicam no que se é possível chamar de formação de caráter? “Não.” – pensou – “Justamente por estar com o caráter em formação é que não podia deixar de ser o que eu não era, pois o que eu era naquele momento ainda tava se definindo. Como poderia aquele moleque que eu fora um dia ter esse tipo de consciência, se ainda não me tinha sido apresentada tal virtude?”.

Definitivamente não era por ali que devia procurar.

Lembrou-se então da fase seguinte a esta, em que, jovem, vivia ainda com intensidade, ainda tenaz. Nessa época, era alegre, divertido, bonito, inteligente. Foi, talvez, digamos, um cara interessante. Alguns resquícios de adolescência lhe acompanhavam até o início da idade adulta mas amadurecia depressa demais e aos poucos, esses resquícios se sedimentavam. Imaginou se seu caráter já estava formado nessa época, e achou que sim. Mas se lembrou também que quem acha não sabe nada, que se individualizou muito nesses tempos, trabalhava. Arrumou uma namorada maravilhosa, com a qual se casou; ela lhe podava muito, mas ele a amava a ponto de mudar em si o que não agradava à sua então parceira. A relação era recíproca: também era amado em igual medida pela companheira, só que ela não fazia idéia do nível de adaptação a que sujeitava seu então marido, e disso só ele sabia. Por isso mesmo, passou à etapa seguinte: não iria encontrar nestas memórias a solução, pois concluiu que sua vida nessa época passava por mudanças demais e essa instabilidade não lhe assegurava ser ele mesmo.

No próximo período que passou a analisar, encontraria talvez os maiores desafios, os grandes altos e baixos nesse gráfico que fazia de sua vida. Sabia que agora, talvez, a porca torceria o rabo: o casamento o transformou em pai de família. E os filhos cresciam, os três, comprovando a evolução da espécie: cada vez mais fortes, sagazes, espertos, ativos. Encantava-se com suas descobertas. O trabalho ia bem, fora promovido. Se dava bem com todos os colegas, desfrutava de situação financeira abaixo das expectativas de sempre, mas de maneira estável. Afinal, cargo público é mamãozinho com açúcar. Nunca fora corrupto, nem de pilhar o alheio. Quem sabe isso não fosse a tal felicidade da qual todos falavam e, aí sim, lhe houvesse oportunidade de ser quem realmente fosse. Mas se lembrou que nunca pôde sentir esse gostinho por aqueles dias: fazia concessões aos filhos que não gostava de permitir; apesar de não ser corrupto, como já dito, seu chefe imediato o era e lhe impunha obrigações ilícitas, as quais fazia com desagrado e pudor excessivos, tudo porque um belo dia o chefe o flagrou dando uns pegas numa estagiária nova, colega recém-chegada na repartição. Cabe aqui uma pausa pra explicar essa situação.

Era uma ninfeta de 19 anos, deliciosa. Sempre ele foi fiel à esposa, mas como Nelson já havia dito, “O brasileiro, se não é canalha na véspera, é canalha no dia seguinte.” E ele é brasileiro e não desistia nunca: a patroa engordara, perdera o viço da pele, o que a embarangou em pneuzinhos e pelancas elásticas, transformando a mulher dos sonhos em coisa intragável até na maior necessidade fálica. Ela só se preocupava com os filhos e esquecia de sua vida, de sua beleza, sua personalidade. Era ficar à toa vendo novela de dia, reclamação de noite quando os filhos estavam todos em casa. Só os bacuris tinham importância, o que aplacou em nosso amigo, primeiro ciúmes, quando a esposa ainda tinha algo a ser notado, o que o fez, meio que inconscientemente, num mecanismo de defesa, maltratar os filhos, olhando-os com um certo rancor. Como a situação se deteriorava com o tempo, percebeu o erro, entregou os pontos, voltou a amá-los, mas se desiludiu de vez com a companheira. Apesar disso, se esforçou em ser fiel até o último momento, não por convicção, mas por convenção social mesmo... Mas a coleguinha de trabalho... Ah! Aquela estagiária.... Sintonizavam-se bem demais nas coisas do trabalho, o que um pensava, o outro pensava também; o que um fazia, o outro completava. Os olhares se cruzavam a todo instante, se aproximavam para falar próximos e ficava aquela cena de filme, quase beijo, quase sempre. Ela era jovem, cheia de vida, taluda, com tudo no lugar. Dessas de mandar foto como candidata a “Coelhinha da Playboy”. Romântica, mas safadinha na dose exata. As idéias combinavam bem demais, ela o olhava com aquele jeito doce meio sacaninha que derrete qualquer cristão fervoroso. Ela fazia questão de usar o típico uniforme de secretária: salto, meia-calça escura (ou ligas) por baixo da um a saia no joelho; camisette branco de botões, abertos estrategicamente no decote, exibindo os fartos seios de um jeito que eles não pulavam pra fora nem se escondiam; cabelos longos, pretos e lisos, presos com lápis, formando um coque alto; óculos discretos, que também faziam as vezes de tiara quando soltava os cabelos; prancheta na mão pra fazer anotações, quando colocava a caneta na boca e fazendo aquela expressão de quem ta pensando, ao mesmo tempo que verificava de rabo-de-olho onde ele estava; um olhar penetrante quando vinha, um rebolado malemolente e hipnotizador quando voltava e seus passos faziam no assoalho um som que arrepiava até obreiro de igreja pentecostal.  Não, não era uma mulher puta, era uma puta mulher! Feminina, fêmea fatal, que além da forma clássica, tinha um conteúdo também clássico: inocente onde devia ser inocente, tinhosa onde devia ser tinhosa. E essa visão do paraíso ainda lhe dava bola! Repito: ele tentou até onde deu, mas um belo dia ela deixou na mesa dele um bilhetinho, que a procurasse na hora do almoço. Aí, parceiro, a carne é fraca e fidelidade tem limites, até porque, nesse caso, o duvidoso que lhe aparecia era melhor do que o certo com que estava casado: em casa, comia arroz requentado e feijão amanhecido, e no máximo, uma vez por semana, sábado à noite, uma comida sem tempero e fria, o que causava acúmulo de libido e testosterona e, agora, naquele momento, essa morena, esse monumento de mulher lhe seria um banquete dionisíaco, refeição completa, caviar russo com foie gras, pra desopilar o fígado e o falo. Resumindo: não demorou muito  a cabeça de baixo dominou a de cima: foi ao local do encontro e lá, entre sorrisinhos e olhadas sem graça pro lado, ela revelou que achava ele um homem interessante e tals. Aí, querido leitor, num prestou, o nosso (herói?) nem titubeou, deu-lhe um “vem cá minha nêga”, carregou-a pro arquivo morto e mandou ver na lindinha. Foi tão bom que a coisa virou rotina, dia sim, dia outro, horário de almoço era sagrado. Foi quando o chefe percebeu que os dois ficavam até mais tarde pro almoço e se aciumou da situação, pois tava de olho grande na menina e, um belo dia, driblou todo mundo, fingiu que foi prum lado, veio pro outro, deu um tempinho e... Ta lá! A estagiária, sainha pra cima, de quatro, gemendo loucamente numa enrabada... O subordinado ia e vinha, batendo a barriga naquela bunda linda... Que inveja (eu também). O chefe deu o alerta da visão, foi aquela coisa de se vestir rápido, mas o cara saiu de fininho. Chamou a estagiária, veio com a conversinha de que queria também, senão rua, ela, muito digna, preferiu perder o emprego. Quanto ao nosso herói, ao ser chamado pelo chefe, deixou claro que ou ele colaborava e fazia o que fosse mandado, ou entregava a cena à esposa, o que transformaria a sua vida num inferno de deixar o capeta com inveja. Como não tinha opção, pois também era um cara acomodado, resolveu ceder à pressão. Já a amante, ainda a encontrava no horário de almoço, num drive-in perto da repartição.

A vida tripla que levava foi a garantia de que ali ele se perdera, mas ainda não foi nesse estágio que se perdeu de si: como seu castelo de cartas marcadas caiu (a garota lhe passou pra trás depois de algum tempo, o esquema de corrupção foi descoberto, o que lhe rendeu um rebaixamento de cargo, implicando em abrir o jogo com a patroa, ocasionando assim o divórcio litigioso com pagamentos compulsórios de pensão alimentícia descontados no contra-cheque, visitas aos filhos agendadas pelo juiz, o olhar rancoroso dos três, já pré-adolescentes e manipulados pela mãe, lhe causando desgosto e remorso, vivendo sozinho numa kitinete alugada num bairro afastado do centro da cidade, sem amigos e com vizinhança que considerava de “baixo nível”, e aí então pôs-se a pensar: “não, não foi aí que me perdi de mim, pois se eu tivesse me permitido nada teria acontecido como aconteceu, as circunstâncias não me engoliriam. Logo, estava perdido há tempo... Ou será que não: Acho que se...” – parou aí o raciocínio para pôr a chave na porta e entrar em casa. A noite já estava baixando.

Então, foi dar uma mijada, saiu sem lavar a mão, foi à geladeira, não achou comida e pegou uma latinha de cerveja, ligou a TV, sintonizou a novela, sentou no sofá, peidou barulhentamente, tirou os sapatos e as meias, começou a coçar as frieiras e deixou tudo pra depois.


Outros textos de Ricardinho Sales podem ser encontrados aqui ou no próprio blog que administra (http// viveremfesta.blogspot.com).

CINTURINHA

Publicado pelo jornal Circus Produções

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

CAIROS



Maycon Alves (poema)
Getulio Cardozo (Ilustração) 


cairocairopedrasquecaipelocairosãocairoslevadosparaoutroscairos.


Ilustração a nanquim por Getulio Cardozo

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

CHEGAR À BÍLIS


                                  Rafael Martins



Chegar à bílis
  à cólera
no seu estado mais puro

Chegar ao extremo de uma existência
só para provar
uma inexorável gula de nada
só para lamber
a lâmina obscena da linguagem
enlouquecendo o verbo
a fala

Dar ao meu poema
(impossivelmente)
densidade de chumbo

e arremessá-lo contra
o que for crosta e superficialidade


texto 21 - c. l. r. (lâminas / iluminuras)


 c. l. r. 
(lâminas / iluminuras)

texto 21

alcino mikael filho


não sabia em que cidade do mundo o conhecera. era, pareceu-lhe então, perto da água e por isso chamara-o de rio, setembro, flamboiã repleto, madrugada! tudo nascera secreto. sabia que era a manhã de um tempo novo, de uma estação no mundo iluminada. era tempo de letras nunca no universo usadas. estava à janela, distraída encontrava-se. ele passara num carro aberto, fora de moda, ela sorria despreocupada, como se estivesse no mundo para desfrutar de suas ruas inundadas. os jarros que toda mulher tem e que abastecem os seus seios eram rasos, ralos, mas sabia que tinha os olhos sem mágoa. levantara cedo porque o que mais amava no mundo era a madrugada – o mundo atenta e regularmente inspecionava –, vira-o passando por suas escadas. sim, sabia que podia estar enganada. talvez tivesse sido no meio da música – violeta valéry sempre alagava-lhe a casa – que o designara. não era uma mocinha casamenteira, afoita para subir ao altar, e, como tinha muito tempo para viver a sua vida, poderia fingir que encontrara um moço passando perto de suas salas, naquela hora da vida pouco visitadas! nunca saíra de casa, mas o destino tinha tantas abas! o seu desejo era muito mais forte do que ela mesma e poderia ter atraído à sua porta o moço magnífico que a encantara! os detalhes nunca lhe importavam, disse-se rápida, encurtando sua fala, para que não chegasse a indomável enxurrada, completou prática. usar da narrativa sempre a aborrecia, era uma coisa rasa. o importante era que o que ocorria entre música e lágrima. era eterno, nunca acabava, disse a eugênia que a escutava, mesmo sabendo que podia estar equivocada. sabia que no mundo tudo escoava, mas estava agarrada a palavras e podia dar-se ao luxo de dizer que música e metáforas eram escudos que nunca abandonavam as escadas que a cercavam. talvez o moço não soubesse que ela era uma moça tímida, que vivia numa casa antiga, com uma única aia, que era sua mãe, madrinha e criada. no dia em que o conhecera, dentro dela doía, a primavera estendia na cidade os seus barbantes, uma ou outra cigarra, sabia que não podia, que nunca conseguiria, que seria sempre uma sombra na madrugada. mesmo assim deixava claro que migalha não aceitava! no amor era orgulhosa, avantajada! viesse sem fartura, não se atrevesse a subir os degraus que levavam à sua casa! por amantes muitos, como a traviata, fora enlaçada. não tivesse o dom ao esplendor das talhas, desistisse da empresa de fazer dela namorada! voltasse, entretanto, se fosse disposto a grandes jogadas. era uma rainha que apreciava a diversão, íngremes piadas! passasse novamente por sua janela e seria convidado a escalar suas escadas delgadas!




MIKAEL FILHO, Alcino. c.l.r. (lâminas/ iluminuras). São Paulo: Nativa, 2002.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

FOLHAS



 Luzia Oliveira Silva
 
Cada folha que cai desse seu tempo,
dessas pétalas que envolvem suas mãos
dentro do orvalho,
desses dias voando terrestres e selvagens
nesse seu vestido virgem.


Pintura por Luzia Oliveira Silva



Luzia Oliveira Silva é poeta e artista plástica


O HOMEM FEIO



Getulio Cardozo
(Conto)

 Não gosto do barulho das ruas, prefiro os peixes ou os passos de minha mãezinha. Não aderi ao celular, ao computador e aqui na minha frente está minha velha e querida máquina de escrever. Disse ao meu psiquiatra que meus dias terminaram em 1958 na garupa do pangaré do meu tio, a quem dedico esta estória por ter sido bom comigo. O fim de minhas ilusões foi quando minha mãe desligou o rádio onde ouvia toda noite a novela do Juvêncio, o justiceiro do sertão.

Você, querida, veio de um tempo mais remoto, dos arredores de uma ermida, de um vale que meu psiquiatra diz representar a infância.

Nenhum muro pode dividir nós dois, sempre haverá um jeito de te encontrar nos labirintos em que te perdi.

Acabo de datilografar 15 de junho. O que aconteceu nesse dia devia por num envelope para o carteiro entregar em sua mão.

De 15 de junho para cá a vida transcorreu sem charme, a não ser quando revejo algumas fotografias. Tenho uma foto que você estava com treze anos e acho que foi roubada da sua bolsa enquanto você se trocava. Outra foto sou eu e minha mãe em Aparecida do Norte, estou segurando uma imagem da santa. Queria ter uma foto do meu pai, para saber como ele era...

Chove lá fora, chuva pesada... Por isso peço-lhe que fique mais um pouco, até porque estou muito perturbado por causa do aluguel atrasado. Tem muita goteira no telhado, o piso é velho, mas gosto de morar nessa rua. Fique mais meia hora, pois logo o comprimido faz efeito. E sem você aqui a casa fica muito grande e o gato fica triste. O leão ficou uma semana sumido, certamente te procurando pela cidade. Fique pelo leão, porque sei que entre a gente a coisa está difícil. Difícil, mas não terminado... Pois você mesma dizia-me que o amor é eterno, divino, lembra? Nem foi você quem disse, nossos olhares diziam isso, de tão ternos e profundos.

Essa noite eu queria dormir como criança e não sonhar com lugares desolados. Agora há pouco pedi a Deus que fizesse um milagre parando a chuva, que revelasse a sua existência através de um firmamento estrelado, porque sou uma criança boba.

Você chegou até mim numa onda. Quando beijava os dedos dos seus pés, quando a brisa erguia o lençol de seu corpo, um animal cochichava coisas no meu ouvido e por isso eu ficava tão louco. Não era o álcool não, era o animal que veio contigo.

Você mora sozinha na frente da minha casa e eu poderia ir até sua casa e acabar com essa agonia. Tenho certeza que você também está deprimida ou talvez completamente embriagada. Estranho, somos sozinhos no mundo, nos amamos e não conseguimos estar juntos. Que diabo enfia no meio da gente? Dá vontade de chamar o diabo e perguntar o que deseja da gente.

Outro problema: sou muito feio e você é linda. Acho impossível o amor nessas circunstâncias. Olhe bem para mim: sou baixinho, narigudo e com a perna direita atrofiada. Você pode retrucar: “você é um deus. Nunca ouvi de ninguém as coisas que você me disse.”

Confesso que tenho vergonha de aparecer nu diante de você. Por isso sempre te peço para apagar a luz. Conheço seu corpo pelo tato. Não imagina como gostaria de vê-la sentada na areia, de costas para o mar.

Por isso, minha querida, te maltrato. Escondo-me nas sombras puxando a perna. E você se embriaga pensando que não te amo.

Ilustrações a nanquim por Getulio Cardozo


sábado, 5 de fevereiro de 2011

CINE MOCOCA 50 ANOS



Renato Granito

A concernente película em comemoração ao cinqüentenário do nosso glorioso Cine Mococa partiu da idéia de prestar em vida uma homenagem ao grande Zezé Lippi, assim como, os idealistas responsáveis pela construção da sala de cinema, como o Padre Haroldo e tantos outros colaboradores.

O documentário Cine Mococa 50 anos foi uma árdua empreitada, desde a elaboração do roteiro, a pesquisa de fontes, a escolha das fotos, trilha sonora, a conversa informal com os participantes das entrevistas, a arrecadação de recursos, o acompanhamento da edição tudo isso em um curto espaço de tempo.

Em pouco tempo o sonho alucinógeno de fazer documentário no interior sem recurso, somente com uma idéia na cabeça, euferia, corpo e adeptos, desde então vislumbrava a necessidade de constituir o Cineclube Zezé Lippi, para desenvolver o conceito de produzir audiovisual de qualidade e com apelo cultural. Um dos precursores que eu mais me inspiro é no Maestro Coelho de Moraes, que por muito tempo desenvolve projetos de elaboração de curtas. Desta forma a construção cultural em nossa cidade se desenvolve por pessoas e entidades engajadas pela popularização do nosso cinema.

Agradeço ao Silvio Granito, Leandro Granito, Zezé Lippi, Mario Zamarian e Carlos Alberto Paladini e ao Blog Margem Plural pela oportunidade de falar um pouco sobre o documentário e aproveitando o espaço para convidar os interessados a freqüentarem o Cineclube Zezé Lippi. Aproveitem e assistam ao vídeo abaixo: Obrigado!



Renato Granito (é Professor de História e Geografia da Rede Estadual de Ensino, Colégio COC Casa Branca - SP, Escola Nova Objetivo Monte Santo de Minas – MG Escola Degraus ETAPA Monte Santo de Minas – MG)  Preside o Diretório PSOL – Mococa e o Cineclube Zezé Lippi).