quarta-feira, 9 de março de 2011

O CADÁVER DE GARCIA


Getulio Cardozo
(conto)

No escurinho da granja de frangos um sujeito grandão procura alguma coisa no chão com a lanterna acesa.Alguns metros atrás alguém de chapéu fala de cima da carreta do trator:

Não se sabe ao certo se foi em sonho que viu um padre erguendo os braços para o céu, dizendo que não punha mais os pés na granja, nem com ordens da diocese. Depois deu uma risada, pois apesar dos três pontapés os urubus continuavam rindo e saltando sobre o cadáver de Garcia.”Ufa! Quantos anos dedicado a esse sopro de vida, a uma merda qualquer!”- Resmungou o padre já bem longe.Garcia não se importava com os urubus, mas com aquele lampejo de consciência que sobrou não se sabe onde, um resto de vida que teimava em ficar. Boa parte da sua história desapareceu ao pegarem na alça do caixão (a caminho do cemitério ainda recordava de uma mesa de bilhar). 
                  
Não via a hora daquela chama de vida saltar do seu peito para aquele céu cinzento. Daquilo que os parentes da roça chamavam bofe e no porco miúdo, somente restou um rim, pois os urubus escavaram seu corpo o dia inteiro. Torcia para aqueles carniceiros chegarem ao cérebro, pois lá estavam sentadas em linha reta as figuras encapuzadas para lembrar que o mês de abril seria terrível, seco, solitário, com um céu sem promessa.

Se fosse possível desligar aquilo com um alicate, teria feito. 
  
O grandão ilumina com a lanterna a pessoa que fala de cima da carreta:

Daqui para frente reproduzo o que a arrumadeira me narrou. Tentarei ser fiel. Acrescentarei as anotações que ela me passou, mas que julgo de pouca importância. A mulher entra em cena com um balde, um rodo, uma vassoura e um pano molhado. Imagino-a esfregando o chão com o pano molhado quando acenderem os holofotes.

O grandão encosta na roda do trator e começa a falar com voz de mulher:

Sou arrumadeira há quatorze anos na residência dos donos desta granja. Meus patrões são ricos, donos de mais cinco granjas e uma empresa jornalística. Antes quase não eram vistos, a não ser a velha na janela do quarto de cima, onde se ouvia o choro da menina. Depois do caso Garcia me chamaram até pra uma grande festa que fizeram, na casa de umas pessoas que nunca vi... Gente estranha! Não fosse os meus poderes mediúnicos não haveria uma linha dessa história do finado, que rendeu tanta polêmica e anúncios no jornal da família.
         
Como kardecista estou certa que Garcia era um espírito de luz. Empresário afortunado, ergueu com as mãos tijolo por tijolo do seu império, achando ainda tempo para os órfãos e as viúvas. Nos últimos anos de vida teve a memória pisada, levantaram-se contra Garcia acusações de estelionatário, corruptor de menores, prostituição infantil, lavagem de dinheiro, etc, etc.
                           
Garcia da última vez que se comunicou comigo apontou onde está o seu corpo e já avisei o patrão. Ele quer que eu acompanhe os repórteres em mais esse furo de jornalismo. Será uma demonstração de como o espiritismo é uma ciência, uma glória para nosso mestre Alan Kardec! 
                           
O cenário para essa reportagem está sendo trazido de avião, havendo até atores famosos. Pelo menos é o que ouvi da enfermeira que cuida do patrão, uma moça linda... mas estranha. Ela nunca sai do quarto dele, nunca.Dizem que é a menina que chorava no quarto da velha, mas tem muito boato aí.
                           
Entra em cena um gordo batendo numa lata como se fosse tambor. Ele interpreta Garcia:

Joguem sobre mim os holofotes! Iiisso! Luz para que me vejam, para que não haja nenhuma dúvida, para que fujam os falsários, os supersticiosos, os cretinos, aqueles que se contentam com o lixo...Podem aplaudir Garcia...Não tenham medo! Quando saírem daqui digam que me viram. Subam no muro e digam: Vimos Garcia! Sou eu o morto? Um empresário desonesto, dono de empresa falida? Não se reconhecem em mim? Que a verdade seja dita! (Arreganhando a boca) Luz nessa língua que tem muito o que dizer! Nem tapem o nariz, pois se suportarem o meu cheiro... Ah! Estou incomodando... Então apaguem as luzes, para que fique só o cheiro. Procurem me reconhecer pelo nariz ou senão tentando me descobrir no escuro tropeçando uns nos outros. Estão rindo do que? Não vão se livrar nunca do meu fantasma... Nunca!
                  
Bate na lata, mas para espantar os urubus que voltam a atacar o cadáver de Garcia.

                   De dentro de um buraco o grandão diz:

Rasgue os papéis... Diga sem ler! Tente, não custa... Isso! Bravo!

                   O gordo da lata improvisando:                
                                     
Pelo jeito já amanhece. Um feixe de luz consegue penetrar nesse lugar que parece terrível e que apesar da comédia um drama se arrastou.

                   O grandão:

Bravo! Mas basta...

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