segunda-feira, 25 de abril de 2011

8 ½, A ALMA LEVE DE FELLINI


Rafael Martins



Pense na seguinte cena: Sol. Engarrafamento. Dentro do carro, um homem passa flanela no pára-brisa frontal. Todos os vidros fechados.  Subitamente, as pequenas entradas de ar começam a soltar vapor para dentro do veículo. O homem não consegue interromper o processo nem baixar os vidros, as maçanetas também não respondem. Ao seu lado, todos os motoristas, com olhar imóvel, ignoram o seu desespero. Tudo é indiferença até o momento em que, sem explicação, ele chega ao capô do carro e segue adiante, de braços abertos, voando em direção às nuvens.

Assim começa Fellini 8 ½, com o preto e branco intenso da fotografia de Gianni Di Venanzo. Quarenta e sei anos depois, tudo parece ter surgido agora, tudo tem o frescor da novidade, tudo continua revolucionando.

8 ½ é totalmente autobiográfico, a começar pelo título. Este foi o oitavo filme dirigido por Fellini, e o “½” se refere à filmagem que ele fez de Mulheres e Luzes, quando dividiu a direção com Aberto Lattuada.

Toda a trama gira em torno de Guido, um cineasta em crise de inspiração que não consegue levar o seu filme adiante. Aos 43 anos, Guido, interpretado de modo impecável por Marcello Mastroianni, parece viver o seu momento crucial. A mulher, os jornalistas, a atriz, a igreja, o produtor do filme, a amante, todos têm perguntas para Guido, e cada um espera uma resposta diferente.

Com a atmosfera citada acima, este drama, nas mãos de outro diretor, teria tudo para ser asfixiante como um romance de Kafka. Mas não foi o que aconteceu, porque tanto na vida como na arte, é possível improvisar. Guido, o Alter Ego de Fellini, dribla seus credores morais e profissionais sem perder a pose com seus ternos finos e seu chapéu torto, e, quando parece não haver mais saída, existe a porta dos fundos que dá para o sonho.

A capacidade que Fellini tem para fundir sonho e realidade através de seu personagem nos fascina. Há momentos em que não se distingue um e outra, colocando o espectador em dúvida se Guido está vivendo ou sonhando ou simplesmente recordando o menino antigo.

O caráter autobiográfico deste filme se confirmou quando o cineasta, assim como seu personagem, não conseguira terminar as filmagens de A Viagem de Guido Mastorna. Entretanto, passado algum tempo, Fellini mostraria ter superado sua crise de inspiração e suas dúvidas quanto ao sentido de fazer cinema. Se não as superou, ao menos parece ter aprendido a conviver com elas, pois outra obra prima surgiu de suas mãos: Amarcord, ganhando o Oscar de melhor filme estrangeiro do mesmo modo que 8 ½.

Deste grande filme, além das revoluções, ficou sua lição de leveza. A verdade também pode não passar de uma mentira bem contada, semelhante ao cinema onde tudo acaba bem. O próprio Fellini costumava rotular-se como um “grande mentiroso”. Ainda assim, poucos cineastas foram tão honestos consigo mesmos, filmando aquilo que pensou, sentiu e viveu.

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