domingo, 18 de setembro de 2011

O CARRETEL DE ORFEU: DUAS PALAVRAS



                                                                                                       Maycon Alves


Já nas primeiras páginas do livro observa-se uma apresentação rápida e ampla. Nem tanto à terra nem tanto ao mar. Porém o poeta vai emitindo a sensação de quem está suportando um peso no lombo. Um incômodo, talvez. As palavras estão desajeitadas, parecem percorrer uma larga avenida (talvez um desses espigões centrais que corta a cidade com paralelepípedos), mas sem movimentos bruscos, rodeia a cidade tateando a face dos sem níquel. Citadinos miseráveis, migrados do campo, que mastigam a saudade da roça picando fumo de cócoras.

 É onde os pés do autor, cansados de apertar a terra no vão dos dedos, estancam em “Noite”. Quase um alívio. “Noite” é a aspirina do livro. O vento que sopra dali em diante parte das entranhas ao mundo. Poema-suspiro que enche o peito do poeta pra mais um trago de estória. E é dali do alto, onde só se houve a voz dos vencidos, nos “arredores da freguesia”, que desemboca a tormenta dos rostos esquecidos. Dorme. E quando dorme cria. E neste sono, está o poeta descompensado, torto, entrevado entre os galhos pesados de catuaí, de fachadas de santos, de retratos de capitães, de títulos de nobreza, de hectares e dos cardápios franceses. Toda balela de belle époque é insuficiente perto das taperas, das batidas de mamão com gordura... Toda aquela toada de trejeitos senhoriais vai se desfazendo com o fim de “Noite”. As estrofes são moles, tem o barulho da rua, o paletó não existe mais. A cidade é vista pelas frinchas, a pinga solapa o champanhe. Agora, aliviado da trouxa brasonilica, batizado pelos foros de zinco, outras vozes se expandem no texto. Cada ponto e cada vírgula se confundem com as picadas de enxadão que vai revirando a terra.

No entanto, dois poemas (“Os Casarões” e “O Mal Feito”) têm um desdobramento maior e pede algumas palavras a mais.

Se para Oswald de Andrade em São Paulo só tinha dez famílias, em Mococa, juntando todas, talvez desse uma. Mas acontece que “Os Casarões”, são uma espécie de cancro que dominou a arquitetura histórica da cidade. Houve somente uma decadência física desses espaços, posto que a grande mística ainda direciona certos setores da sociedade mocoquense. Tanto que há mais de um século a historiografia de Mococa não se desprendeu deste aspecto cíclico, do qual se parte de “Os Casarões” para retornar aos “Os Casarões”. Este entendimento camuflou novas possibilidades de discussão acerca da história de Mococa, o que não quer dizer que outros canais de discussão não estejam se abrindo.

Mas ainda assim é interessante notar a percepção do poeta, onde “a arte deu-lhes carta de alforria”. De fato o aspecto de pujança prevalece mais do que o ambiente decadente, degradante. Mas talvez possamos levar adiante a máxima de que a história se repete uma vez como tragédia e outra como farsa. Esta “absolvição pela arte” caminhou no sentido de emperrar e engessar o nosso desenvolvimento político enquanto cidade que agrega o seu passado ao seu cotidiano. E não seria muito dizer que o passado de Mococa não é (apenas) este vendido nos manuais. E estes “Casarões” só não estão de “joelhos” perante a história de Mococa por conta de uma forte enxurrada ideológica que os anistiaram cotidianamente.
 
Neste mesmo caldeirão, o poeta acrescenta o tempero de “O Mal Feito”. Novamente um forte reclame ao nosso passado. O qual permanece incompleto, com muitas vozes “na sombra”, sedentas para serem arremessadas ao sol. Pois Mococa parece ter sido amaldiçoada com a praga de Eco lá do mito grego. O fato é que não devemos ser cúmplices ao admitir que herdado de nosso passado “muros sem protestos”. Pelo contrário. A questão é que estes muros padecem de bolor. Estão cobertos do napier plantado pela própria elite.

Ademais, ao final da leitura, fiquei matutando aquela frase do Drummond na cabeça de que “toda história é remorso”. Mas como remorso e remoer são algo muito semelhante, este novo livro do Getulio Cardozo é pra remoer e aliviar o remorso. 



Nenhum comentário:

Postar um comentário