quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A BELEZA QUE RESISTE



Este artigo, por conta da urgência do momento em que fora escrito, encontra-se “desatualizado”. Na época, A Teta Assustada concorria ao Oscar de melhor filme estrangeiro, mas acabou perdendo a disputa um mês depois, para o argentino O Segredo dos Seus Olhos. Ainda assim, creio que a abordagem do filme em si possa ser útil aos que tenham interesse por cinema.

Rafael Martins

Apesar de tudo, belezas resistem na América Latina. Ainda há algo em nossos trópicos que não se move de acordo com a batuta do Tio Sam. A prova desta afirmação se encontra no novo filme de Claudia Llosa, A Teta Assustada.

Interpretada por Magaly Solier, Fausta é a jovem que, segundo seus familiares, sofre de uma doença transmitida pelo leite materno. Desta forma, todos os traumas sofridos pela mãe violentada são passados para a filha. O nome deste mal é o mesmo que dá título ao filme: A Teta Assustada.

Logo no início, a única coisa a surgir da tela escura é a voz da mãe de Fausta que, numa espécie de canção, conta toda a sua tragédia. As palavras soam de modo peculiar e parecem fazer parte de um dialeto indígena surgido de lugares e tempos remotos, quase intocados pelo cotidiano das grandes metrópoles.

Fausta herdou da mãe, além dos traumas, o dom da poesia. Em seus momentos mais difíceis, ela só consegue se expressar cantando. Quando a matriarca falece, ela se vê obrigada a sair de seu povoado (bairro periférico) para trabalhar em Lima, trajeto que ela faz todos os dias. Não demora muito para que a patroa da jovem descubra o seu talento e se beneficie dele sem dar os devidos créditos à sua verdadeira dona.

Uma das coisas mais emblemáticas desta história é a longa escadaria que Fausta precisa subir para chegar ao seu lar. Só ali, no alto do morro, as pessoas são iguais. Descer esta escadaria rumo a Lima torna-se o equivalente a deixar o paraíso e ir em direção ao seu oposto. 

Visto por diversos ângulos, nada aparece gratuitamente neste filme. Trata-se da vida de uma moça e também da história de todo um povo e, por que não, de um continente até hoje dividido por classes. O passado recente da América Latina traz consigo histórias de repressão dos mais diversos tipos e lutas por alguma liberdade. Levar tais temas à grande tela não diminui o que o cinema tem de arte, pelo contrário, lhe confere maior importância.

Também vale lembrar que todo este quadro de denúncia não se sustentaria por si só sem a direção forte e autoral de Claudia Llosa. Embora o tema abordado seja doloroso ao povo peruano, a delicadeza com que a lente da cineasta se volta para essa gente, com suas tradições, músicas e cores, torna leve o que tinha tudo para ser indigesto. Existe a dor, mas também existe a alegria surgindo das coisas mais simples da vida.

A originalidade de A Teta Assustada encantou platéias pelo mundo e conquistou o Urso de Ouro em Berlim. Agora, concorre ao Oscar na categoria de melhor filme em língua estrangeira. Surpreende o fato de uma obra pouco convencional passar pela seleção de um júri tão conservador. Nestas circunstâncias, sua vitória, mais do que surpreendente, seria um verdadeiro milagre.

Seja qual for a próxima honraria, o recado de Claudia Llosa cumpriu o destino. Aqueles que o receberam estão tocados pelo seu protesto ou pela sua beleza.

Artigo publicado no jornal DEMOCRATA (São José do Rio Pardo, 20 de fevereiro de 2010).


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