sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

CRÔNICA DE FIM DE ANO


Vinícius de Moraes
(In: O Cinema de Meus Olhos, pg. 39)

Há uma tristeza nos fins de ano. Se nós a pudéssemos ver do alto, com uma grande câmera fantástica, que retrato da vida não daria! A recuperação de um tal sonho não nos custaria, a nós mesmos, toda a possibilidade de paz? Mais que a face da Terra enrugada de guerras, mais que o fogo ínfimo das batalhas minúsculas, salteando-se de florestas a savanas, de savanas a campos de neve, veríamos uma quietação periódica cheia de pressentimentos, suspensa desses países eleitos da mediocridade ou da pobreza, onde em casas e arranha-céus liliputianos se apertam numa ternura angustiada as pequenas e as grandes famílias, todas igualmente odiosas, todas igualmente vencidas pela astúcia dos sentimentos que sobrelevam o interesse de cada um, numa vaidade e num orgulho monstruosos de ser e estar.

Esse primeiro do ano a vir, ninguém realmente o quer, ninguém precisa dele. É ao passado que se dá a alma de cada um, ao passado que não passa, onde se foi amigo, amante e amado, onde se viu morrer alguém ou alguma esperança, onde se lutou, no esquecimento constante da grande tragédia do movimento humano, que a muito poucos oferece um caminho mais digno. E no ponto de passar a linha do tempo, faz-se, cada um, um pouco herói, um pouco amigo, um pouco santo, oferecendo holocaustos ao deus do medo em louvor do tempo futuro.

Haverá nada de mais melancólico que esses homens bêbados na rua, essas famílias emocionadas, esses amores rápidos, esses olhares vagos onde não se confessam os temores, as dúvidas, as incompreensões? Que há de mais patético que essa coragem surda e prestes a vencer-se em lágrimas, desses homens que a celebração reúne, e que aos poucos explode em confissões, em determinações; coragem sempre ao ponto de brigar com seu semelhante; de desejar-lhe a mulher; de lhe submeter a opinião; coragem só para ganhar, nunca para perder, nunca para aceitar, nunca para compreender...

Ainda outro dia eu via, numa sessão de cinema, um anúncio de boas festas: “Venha passar alegremente o Ano-Bom assistindo ao novo filme... à meia-noite de 31 neste cinema!”. Que coisa desoladora, ir alguém ao cinema num 31 de dezembro! E pensei no operador, encerrado na sua cabine, rodando o seu filme para uma multidão sem mulheres, aprisionado na sua cabine, no justo momento em que Old Father Time vira a sua ampulheta inundando o mundo de areia... E como esse pensamento me levou longe! Pensei nos prisioneiros, não nos de guerra, mas os que o são por medo ou por fraqueza; nas pensões alegres, onde as mulheres se encerram para a vida; em todas as abandonadas do amor, as ludibriadas, as exasperadas, as loucas; pensei nos loucos nos hospícios, onde o silêncio deve gerar uma solidão de caos, cortada de alucinação, de percepções fulgurantes da vida; pensei também nos delicados, os que se deixam levar, oprimidos pela própria timidez, pela angústia de falar mais baixo. E pela primeira vez, sofrendo por essas coisas, não me envergonhei, nem amei a minha antiga frieza diante delas. Esse desperdício de angústia, onde irá ter?

Dezembro de 1941
MORAIS, Vinícius. O Cinema de Meus Olhos. São Paulo-SP: Companhia das Letras: 2ª ed., 2006.
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De tudo aquilo que li acerca das comemorações de fim de ano, esta crônica foi o que mais me tocou, pela beleza e pela sinceridade na descrição dos sentimentos a nos assombrar nesta época.

Ainda assim, sem hipocrisia, desejo um feliz ano novo a todos com os quais tenho trilhado.

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