domingo, 2 de janeiro de 2011

VIDAS SECAS: Cinema Novo e Miséria



Rafael Martins
  
Em 1963, um ano antes do golpe militar, Nelson Pereira dos Santos levava "Vidas Secas" ao cinema. Baseado no romance homônimo de Graciliano Ramos, o filme mostra a história de uma família de retirantes composta por Fabiano, Sinhá Vitória, o filho mais velho, o filho mais novo e a cadela que, ironicamente, recebe o nome de Baleia.
 
Como obra literária, "Vidas Secas" vai além do terreno da ficção. Trata-se de um ensaio profundo sobre a miséria no norte do país e o homem que nela está inserido. Ao ser transportado para a grande tela, este relato se manteve fiel tanto pela estética quanto pela reflexão.
 
Contudo, a abordagem de Nelson Pereira dos Santos não deixa de ter sua marca autoral. São muitos os momentos em que o cineasta toma uma via diferente da que foi escolhida pelo escritor. Logo no início, depois de longa caminhada, a família de retirantes se mostra completamente exausta. É quando o menino mais velho cede ao cansaço e ao desespero, deixando-se cair no chão. Seu pai, interpretado por Átila Iório, tenta convencê-lo a seguir adiante. Os seus poucos argumentos são inúteis e a única solução encontrada é levá-lo às costas. No romance, Fabiano, depois de argumentar, espeta-o com uma faca para que este volte a caminhar. Esta e outras passagens exemplificam a crueldade de Graciliano Ramos para com os seus personagens, enquanto que o cineasta lança-lhes um olhar mais complacente.
 
Ao fechar o livro, o leitor de "Vidas Secas" pode ter a impressão de que ali o homem está no mesmo patamar do animal, à medida que os membros da família não fazem outra coisa senão lutar pela sobrevivência. Eles nem possuem boas lembranças que lhes possibilitem alguma fuga da realidade. Dentre estes personagens, o único capaz de transcendência é a cadela Baleia, que, antes de morrer, vislumbra um mundo cheio de gordos preás. O filme consegue transmitir a mesma ideia já na primeira e longa tomada, onde, ao invés de uma trilha sonora convencional, optou-se pelo ruído incômodo de um carro de boi. Lentamente, quando os retirantes que surgiam no horizonte vão se tornando visíveis, constatamos que são eles os únicos que carregam a própria bagagem às costas, ou seja, os "animais" em questão.
 
Esta adaptação pertence ao conjunto de obras que compõem o Cinema Novo, movimento cujos filmes propunham nova linguagem e conteúdo. Nelson Pereira dos Santos, mais do que expor a fome, a exploração de mãos dadas com subserviência e a incapacidade de revolta sob o sol intenso do norte, queria que as pessoas refletissem sobre as raízes da miséria e se indignassem.
 
Quando "Vidas Secas" foi às telas, o país, tal como acontecia em seu cinema, dava mostras de que começava a acordar. Parte da sociedade queria reformas e outra parte tinha medo delas. A chegada dos militares ao poder, no ano seguinte, era a prova de que o medo venceria outra vez. O filme também termina do mesmo modo que começa. Mas com uma diferença. Os personagens que vinham do horizonte, agora, seguem rumo a ele. Buscam o sul do país e dialogam entre si com alguma esperança. Novamente, tendo o ruído incômodo do carro de boi como trilha sonora, nós, os espectadores, torcemos pelos retirantes, ainda que saibamos que os problemas do Brasil não sejam uma mera questão geográfica.


Artigo publicado no jornal Democrata (São José do Rio Pardo, 27 de março de 2010).

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