sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

texto 21 - c. l. r. (lâminas / iluminuras)


 c. l. r. 
(lâminas / iluminuras)

texto 21

alcino mikael filho


não sabia em que cidade do mundo o conhecera. era, pareceu-lhe então, perto da água e por isso chamara-o de rio, setembro, flamboiã repleto, madrugada! tudo nascera secreto. sabia que era a manhã de um tempo novo, de uma estação no mundo iluminada. era tempo de letras nunca no universo usadas. estava à janela, distraída encontrava-se. ele passara num carro aberto, fora de moda, ela sorria despreocupada, como se estivesse no mundo para desfrutar de suas ruas inundadas. os jarros que toda mulher tem e que abastecem os seus seios eram rasos, ralos, mas sabia que tinha os olhos sem mágoa. levantara cedo porque o que mais amava no mundo era a madrugada – o mundo atenta e regularmente inspecionava –, vira-o passando por suas escadas. sim, sabia que podia estar enganada. talvez tivesse sido no meio da música – violeta valéry sempre alagava-lhe a casa – que o designara. não era uma mocinha casamenteira, afoita para subir ao altar, e, como tinha muito tempo para viver a sua vida, poderia fingir que encontrara um moço passando perto de suas salas, naquela hora da vida pouco visitadas! nunca saíra de casa, mas o destino tinha tantas abas! o seu desejo era muito mais forte do que ela mesma e poderia ter atraído à sua porta o moço magnífico que a encantara! os detalhes nunca lhe importavam, disse-se rápida, encurtando sua fala, para que não chegasse a indomável enxurrada, completou prática. usar da narrativa sempre a aborrecia, era uma coisa rasa. o importante era que o que ocorria entre música e lágrima. era eterno, nunca acabava, disse a eugênia que a escutava, mesmo sabendo que podia estar equivocada. sabia que no mundo tudo escoava, mas estava agarrada a palavras e podia dar-se ao luxo de dizer que música e metáforas eram escudos que nunca abandonavam as escadas que a cercavam. talvez o moço não soubesse que ela era uma moça tímida, que vivia numa casa antiga, com uma única aia, que era sua mãe, madrinha e criada. no dia em que o conhecera, dentro dela doía, a primavera estendia na cidade os seus barbantes, uma ou outra cigarra, sabia que não podia, que nunca conseguiria, que seria sempre uma sombra na madrugada. mesmo assim deixava claro que migalha não aceitava! no amor era orgulhosa, avantajada! viesse sem fartura, não se atrevesse a subir os degraus que levavam à sua casa! por amantes muitos, como a traviata, fora enlaçada. não tivesse o dom ao esplendor das talhas, desistisse da empresa de fazer dela namorada! voltasse, entretanto, se fosse disposto a grandes jogadas. era uma rainha que apreciava a diversão, íngremes piadas! passasse novamente por sua janela e seria convidado a escalar suas escadas delgadas!




MIKAEL FILHO, Alcino. c.l.r. (lâminas/ iluminuras). São Paulo: Nativa, 2002.

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