segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O HOMEM FEIO



Getulio Cardozo
(Conto)

 Não gosto do barulho das ruas, prefiro os peixes ou os passos de minha mãezinha. Não aderi ao celular, ao computador e aqui na minha frente está minha velha e querida máquina de escrever. Disse ao meu psiquiatra que meus dias terminaram em 1958 na garupa do pangaré do meu tio, a quem dedico esta estória por ter sido bom comigo. O fim de minhas ilusões foi quando minha mãe desligou o rádio onde ouvia toda noite a novela do Juvêncio, o justiceiro do sertão.

Você, querida, veio de um tempo mais remoto, dos arredores de uma ermida, de um vale que meu psiquiatra diz representar a infância.

Nenhum muro pode dividir nós dois, sempre haverá um jeito de te encontrar nos labirintos em que te perdi.

Acabo de datilografar 15 de junho. O que aconteceu nesse dia devia por num envelope para o carteiro entregar em sua mão.

De 15 de junho para cá a vida transcorreu sem charme, a não ser quando revejo algumas fotografias. Tenho uma foto que você estava com treze anos e acho que foi roubada da sua bolsa enquanto você se trocava. Outra foto sou eu e minha mãe em Aparecida do Norte, estou segurando uma imagem da santa. Queria ter uma foto do meu pai, para saber como ele era...

Chove lá fora, chuva pesada... Por isso peço-lhe que fique mais um pouco, até porque estou muito perturbado por causa do aluguel atrasado. Tem muita goteira no telhado, o piso é velho, mas gosto de morar nessa rua. Fique mais meia hora, pois logo o comprimido faz efeito. E sem você aqui a casa fica muito grande e o gato fica triste. O leão ficou uma semana sumido, certamente te procurando pela cidade. Fique pelo leão, porque sei que entre a gente a coisa está difícil. Difícil, mas não terminado... Pois você mesma dizia-me que o amor é eterno, divino, lembra? Nem foi você quem disse, nossos olhares diziam isso, de tão ternos e profundos.

Essa noite eu queria dormir como criança e não sonhar com lugares desolados. Agora há pouco pedi a Deus que fizesse um milagre parando a chuva, que revelasse a sua existência através de um firmamento estrelado, porque sou uma criança boba.

Você chegou até mim numa onda. Quando beijava os dedos dos seus pés, quando a brisa erguia o lençol de seu corpo, um animal cochichava coisas no meu ouvido e por isso eu ficava tão louco. Não era o álcool não, era o animal que veio contigo.

Você mora sozinha na frente da minha casa e eu poderia ir até sua casa e acabar com essa agonia. Tenho certeza que você também está deprimida ou talvez completamente embriagada. Estranho, somos sozinhos no mundo, nos amamos e não conseguimos estar juntos. Que diabo enfia no meio da gente? Dá vontade de chamar o diabo e perguntar o que deseja da gente.

Outro problema: sou muito feio e você é linda. Acho impossível o amor nessas circunstâncias. Olhe bem para mim: sou baixinho, narigudo e com a perna direita atrofiada. Você pode retrucar: “você é um deus. Nunca ouvi de ninguém as coisas que você me disse.”

Confesso que tenho vergonha de aparecer nu diante de você. Por isso sempre te peço para apagar a luz. Conheço seu corpo pelo tato. Não imagina como gostaria de vê-la sentada na areia, de costas para o mar.

Por isso, minha querida, te maltrato. Escondo-me nas sombras puxando a perna. E você se embriaga pensando que não te amo.

Ilustrações a nanquim por Getulio Cardozo


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