terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

c. l. r. (lâminas / iluminuras)


 texto 20

alcino michael filho


morava dentro de alguém? era uma fada? sonhava dentro de algum moço que nunca tivesse coragem para visitar a floresta, de vencer as farpas? dentro de algum moço que precisasse dela para ter nos olhos lágrimas? sim, era uma moça de cara molhada. muitas vezes o sal caíra-lhe na cara e só não deixara marcas nos espelhos porque na casa onde morava haviam ceifado os poemas que podiam demonstrar que ela era uma rainha arrojada! sabia que alguns moços eram instruídos por suas mães a não chorar, compreendia que o preço disso fosse áspera cartada. lera a história de um poeta que fizera um pacto com musas aquáticas. em troca de suas lágrimas, recebia poemas de metáforas em que brilhavam o elemento água. no começo fora fácil, o poeta exibia ao mundo odes nunca antes trilhadas, mas, com o tempo, acabou tendo que ser internado num manicômio porque dizia que os desertos do mundo o ameaçavam. mesmo sendo levado ao mar e banhando-se o pobre moço em ondas fartas, só sentia ele areia a queimar a sua alma comprimida, sem medida, sem alças! não sentiria raiva, se entrassem em seu quarto e lhe dissessem que era parte de alguém que chegara ao mundo e que dela precisava para não se afogar nas praias da madrugada! sempre fora compreensiva – simplesmente diria  que não se importava. só reivindicaria espaço suficiente para continuar construindo sua obra, antes do tempo ser destruído pelo nada. não havia sido iniciada? seguiria em frente sem coices, patadas! do homem que amava não queria corpo, sangue, nem precisava ter sua barba roçando sua pele calma! do homem que por sua janela de lambreta passara queria somente meia dúzia de palavras. media o seu espírito não por gestos, mas por sinédoques, embora os ritos sempre estivessem sentados, vigiando as portas da caverna em que acreditava estar encerrada. os lábios dele seriam boa pousada, mas não teriam nenhum valor se não viessem depois de ter pronunciado as palavras roubadas – seria desmiolado bastante para dizer que a amava? – que a vida inteira esperara. oh sim, era versátil o bastante para aceitar que ela não era ela, mas parte de alguém ou de algo que ela não tocava! desde que a deixassem prosseguir em sua aventura fantástica, em sua obra profunda – nos seus ombros cabia o que ainda não brilhava nas estradas –, aceitaria até mesmo que nunca havia deixado o majestoso nada, que era apenas uma mentira que o universo houvesse contado para si mesmo em sua aventura brava! quem lhe dissera que o universo era um bicho acomodado? o moço dentro do qual habitava? vivia dentro de um moço que a inventara porque chorar não conseguia e não tinha como arcar com a dor que nele nunca acabava? para suportar a dificuldade de nunca lhe  ter sido possível lavar-se da dor que no peito nunca se apagava, não a esboçara? para enfrentar o medo de nunca ter o seu coração sido tocado pela graça, não a criara? alguém que nunca ouvisse de outro as palavras encantadas podia prosseguir no mundo sem muletas, espelho ou escadas? aceitava sim ser parte de quem ela não era, ser apenas pedaço de uma página que algum poeta enfezado bordava! ser aldonza ou dulcinea pouco lhe importava, disse com desdém ao médico, tentando fugir apressada da sala onde estava sendo entrevistada.

 
MIKAEL FILHO, Alcino. c.l.r. (lâminas/ iluminuras). São Paulo: Nativa, 2002.
  

Um comentário:

  1. O ALCINO,NESTA OBRA, PATENTEIA A INQUIETAÇÃO SÓCIO/EXISTENCIAL TALHADA POR CLARICE E POR WOOLF. OBS: TIVE AULAS DE FRANCÊS AVANÇADO COM ELE E COM ELE APRENDI A IMPORTÂNCIA DO ESTRATO FORMAL PARA A POESIA.
    EDSON.

    ResponderExcluir