sábado, 26 de fevereiro de 2011

OUTRO LADO DE UMA REVOLUÇÃO


Edson Luiz da Silveira

Labéu da minha vida foi ter nascido mulher. Segunda filha nonata numa família de nobres. Ser nobre, naquela época (século XVIII francês), era nascer com pescoço predestinado pro corte. Meu pai, pego em emboscada, foi o primeiro nobre a perder a cabeça. Vímo-la rolando, escada abaixo, indo bater num cachorro, debaixo de uma chuva de apupos de uma turba enraivada. Depois, acabei descobrindo: meu irmão, meu único irmão entregara nosso pai; meu irmão... Olhos claros, sonhadores e gananciosos, mas que foi também levado ao cadafalso, um mês depois, após uma reunião secreta com Danton e Robespierre. Pobre irmão, a vaidade fê-lo perder a vida. Restamos eu e minha mãe. Poupadas, talvez, pela piedade cristã de monsieur Sanson (o carrasco maior). Seguramos até onde podíamos; então começamos a vender as jóias, as peles, os móveis. Como ela chorava! Minha mãe foi definhando dia a dia. Os amigos todos sumiram e a comida era escassa. Confiscaram nosso castelo, nossa herança avoenga. Oh! Quanta angústia na alma! Passamos a viver de favores, tendo ainda, ó Deus!, que suportar, aterrorizadas, os assédios de alguns asseclas do nosso sistema. A pressão se tornava insuportável. Até que vi minha mãe – matrona ainda de estirpe – levada pela fome e pelo desespero, se deitando junto ao nosso algoz mor, para, na manhã seguinte, ser encontrada sem vida, degolada com o próprio punhal com que tentara, num gozo convulso, vingar a morte do filho. Decidida a matar ou morrer, me tornei, então, uma clandestina dentro do meu próprio país. Vivia me esgueirando. Escondia durante os dias e, à noite, disputava restos de alimentos, com cães e aves, ao longo do rio Sena. Enquanto isso, jorrava, abundante, o sangue azul. Todos os meus, velhos e jovens e crianças rechonchudas e coradas, todos eles, jaziam mortos, insepultos numa vala dispéptica. Então eu enlouquecia. Como um verme à margem do tempo. Passei a ter sonhos horríveis: acordava sobressaltada, gritando e com medo de ser capturada e morta. Em alguns deles, eu era uma pintura, híbrido de colagem e tintas com bocas e pernas e olhos deformados; fragmentada como uma pintura cubista. Em outros, virava madeira: mulher esculpida à força de goiva e enxó, entre mãos luxuriosas e serpentes e livros e príncipes decadentes. Suava. Entre urros e desmaios. Então, sem forças e quase uma fera, fui capturada e vendida ao mercador de escravas. Tornei-me sua amante entre tantas; contraí sífilis, tive os olhos arrancados para que não tentasse fugir. Hoje, grávida, doente, cega e destruída, sento-me aqui, neste trono, sangue azul, nós, demônios da Revolução...  Por favor, entre, venha me ver nos meus sonhos. 


Segundo o próprio autor, esta história lhe surgiu enquanto esculpia uma senhorita na madeira. Figura nobre para uma época pobre.

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