segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

ANOTÓRIO


Primeira parte da novela ANOTÓRIO, que tem como pano de fundo os anos da ditadura no Brasil.
 
 Getulio Cardozo
Veio gritando no meio das moscas escreva com tinta do pau com que se tingem panos, daquele divino pau que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da igreja, não se sabe com que designo empreendemos a viagem, são terras incógnitas e precisamos deixar a carcaça, procurar sob a terra os cascos, a poeira e debaixo de dois ou três lençóis de terra estão as ferraduras, onde o mundo inicia num veio d’água, onde se chega de cueca, mas não de van ou Kombi, já foi dito alhures em verso que a viagem aqui é ao contrário, por outro fuso, pois como preleciona Montepalau “O verdadeiro tigre só há no anti-mundo”. Faça pois a graça de depor sem estar descorçoado, não entregando nunca a quem estiver atrás do refletor os seus cabedais, lembre-se que você é homem mas também rio, nas serranias desfaz dessa carga e já é fêmea, requebra debaixo de uma saia curtinha, pega aquele caminhão da caçamba e vai ver como é bom o cheiro de estrada, ficou pra trás encaixotados os incômodos seus, aquele focinho e aquele pensamento besta metido em sua cabeça desde a adolescência, qualquer hora ia matar um por causa daquilo, que fazia você puxar Leila pelo braço com aquela rispidez, tropeçando no que encontrava na frente, gritando quando o portão emperrava.
Não consegue mais dar uma de peão nem tem aquele chute que derrubava trave de gol, por isso imagina que o azar te acompanha, que o delegado Fleury confiscou os seus mantimentos, que ouviu o assobio do capitão Lamarca, mas isso é porque está em outro fuso e nem recorda o que foi obrado em seu corpo nem do capuz enfiado em sua cabeça, a luz do refletor indo te chamar de madrugada, a estupidez de um tempo te chamando da rua, momento houve que chegou a pensar que veio para celebrar o seu casamento e depois chorou muito achando que Leila havia ido embora no metrô numa noite de garoa, igual àquela noite debaixo da luz do poste quando você achou lindo os olhos de Leila, as sobrancelhas dela eram perfeitas, você nem podia acreditar que era amado por mulher tão linda, isso porque você ainda é nascente de rio, o seu corpo ainda é de taipa.
Veio escondido debaixo do encerado do caminhão e não sai daí de jeito nenhum. Botou na cabeça que o capitão Ubirajara vai te levar pro DOI-CODI, que chegou a hora da verdade, que daqui a pouco vai num micro-ônibus a caminho do presídio Tiradentes. Vai, enterra o Geisel e o Buzaid! Diga de uma vez pro Rodolfo Konder quem é você! Não sabe? Não tem mais congresso da UNE em Ibiúna... Mas se ouvir o barulho de uma matraca não diga nada, cubra-se com um papelão ou finja que está rezando para chover. Não dê também atenção à barulhada das meninas com os animais na grota, frouxou de tudo ali, vale no chão, sobre arranha-gato, do jeito que vier vai. Barulhada mesmo vai ser quando você chegar à conexão, aquilo que dão nome de primeira leitura, uma coisa bem tosca, moço de classe média rangendo pneus, musculação, troca de apartamentos, festinhas, filarmônica tocando na inauguração de imobiliária. Logo-logo vai se aborrecer, mandar pro diabo contrato de financiamento, caminhar solitário pelos arredores onde tem mato, tirar a tampa duma lata de lixo e cuspir a família lá no fundo, mijar em cima de raiva, vai pedir pro fogo subir do chão, gritar do alto do barranco pro pessoal de Gaza “põe fogo em tudo”, pois é com ferro que a coisa funciona, vai apagar a luz da casa e nem querer olhar pra trás, como já fizeram aqueles que estão chegando pela rodovia Arthur Bernardes, ninguém paga um centavo de conta, não pica cartão, não senta na mesa pra almoçar, mulher não esfrega chão mais, rompeu a comporta disse um moleque passando apressado com um cãozinho latindo atrás.
Não é lata e nem ruído no telhado, é palavra. Palavra na hora em que o telefone foi desligado “Leila, amor...Alô!Alô!” O verbo que você pediu emprestado ao silêncio na hora em que Fleury apareceu com o ventilador ligado e disse que ia ser um vento tão forte que ia acabar o mundo. E Fleury alertou que as nuvens estavam se formando, rasgou a camisa e bateu no peito berrando que era ciclone, que ali era uma terra sem Deus, por isso tudo seria revelado, o último selo aberto, ai de quem mentisse, ai de quem escondesse o verbo debaixo de uma lata.

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