terça-feira, 4 de janeiro de 2011

GEOGRAFIA DA PALAVRA


Getulio Cardozo

A paisagem é um dos aspectos importantes da obra de Guimarães Rosa e merece um estudo à parte. Na obra do escritor mineiro a paisagem oscila entre a natureza e a fábula, não podendo ser explicada dentro de um naturalismo científico. Nos contos O Burrinho Pedrez e Conversa de Bois os Gerais se torna terra de encantamento e a narrativa tem a versão dos bichos.
               
A paisagem na obra de Guimarães Rosa nunca é somente aquilo que vemos ou ouvimos: é também uma outra coisa, admirada por outros sentidos. E a palavra é o centro dessa paisagem, o que dá vida às plantas e direção aos rios. Em Grande Sertão: Veredas a travessia do rio São Francisco por Riobaldo tem um sentido existencial. No conto São Marcos, do livro Sagarana, a paisagem é sentida pelo paladar do personagem:

“(...) só na barra sul do horizonte estacionavam cúmulos, esfiapando sorvete de côco; e a leste subia o sol, crescido, oferecido – um massa-mel amarelo, com favos brilhantes no meio a mexer.” 

Para o escritor a palavra é o marco inicial do mundo, os verdadeiros olhos dos homens. Entretanto, quem tem acesso a palavra-mundo em sua totalidade são os meninos, os loucos, os simplórios. No conto O Recado do Morro é o Gorgulho, sujeito sem eira nem beira, que é portador da chave dos acontecimentos, quem é capaz de ouvir o recado do morro.                            
 
Desta forma, a palavra deixa de ser meio de expressão e passa a ser fonte da criação, sendo secundários os acontecimentos. A paisagem é o lugar e o instante onde o mundo se expressa, mas para isso necessita da descrição, da metáfora, da mão invisível da palavra. Não basta existir um lugar, pois esse lugar precisa ser indicado, descrito, ter um nome. Sem nome nada é nada. O signo, portanto, não é mera abstração, mas é elemento constitutivo do próprio universo.                         

Como podemos ver, a paisagem na obra de Guimarães Rosa não é mero pano de fundo, mas uma geografia singular onde movimentam seus personagens. Na novela O Recado do Morro, o personagem Pedrão Chãbergo é pedra ou montanha. Chã que é chão; Bergo que é Berger, do francês, pastor, vaqueiro. Assim, paisagem e homem constituem um único tecido.                           

O mesmo ocorre na novela Buriti, onde o universo converge ao redor do personagem iô Liodoro. Diz Ana Maria Machado, em seu livro Recado do Nome: “Liodoro é Heliodoro, sol de ouro, centro do sistema, em torno do qual gravitam a família e os agregados do Buriti Grande. Lio também é o radical que indica “liso”. Liodoro, liso e duro. (...) Lio é ainda feixe, vínculo a articular entre si os diversos personagens e acontecimentos da trama. Outra faixa de significados postos em ação por esse significante é a de liana, no contínuo enleamento e enredamento em que se tecem os fios do enredo e do texto, num emaranhado vegetal em torno à grande árvore que é iô Liodoro.”

Árvore porque ele é Mauricio, como sua mãe, a vovó Maurícia dos gerais, figura quase mítica evocada pela família. Maurício como mouro, moreno que é, diferente de sua filha Glorinha, “ loura, ou, ou, alourada” . Mas, sobretudo, Maurício como o Buriti, palmeira cujo nome científico é Maurítia vinifera. Natural, pois, que sua mulher se chamasse iaiá Vininha, autenticando a homologia com seu Nome, que também alude a Vênus e confirma que iô Liodoro vive sob o signo do amor.
                     
O significante do Nome iô Liodoro se desintegra e se reintegra, pois numa constelação de significados múltiplos e moventes. Buriti preso à terra, filho dos gerais, traz do pai e da mãe algumas marcas que legitimam sua autoridade natural sobre aqueles que o cercam. Dele vem a seiva da vida. Seu sol da luz e calor. De natureza dupla, ilumina como o sol e dá sombra como a árvore.                           

À medida que se desenrola a narrativa, vão aparecendo em número cada vez maior as contaminações entre iô Liodoro e o Buriti. As descrições de um se aplicam ao outro. Tudo se liga e se vincula pelos fios da linguagem. A descrição do Buriti-Grande acentua a homologia, mostrando como a árvore ocupa no sistema vegetal um lugar equivalente ao de iô Liodoro no sistema familiar.                            

Desta forma, a paisagem na obra de G. Rosa é uma descrição do mundo ou uma maneira de ser de seus personagens.
  
SÍMBOLO E REALIDADE 

Não quero afirmar nesse trabalho que a toponímia na obra de Guimarães Rosa não foi recolhida da realidade, pois segundo Paulo Rónai das quase 230 localidades citadas em Grande Sertão : Veredas, como etapas da odisséia de Riobaldo pelos sertões, mais de 180 foram localizadas e estão apontadas no conjunto de quatro mapas que acompanham o livro de Alan  Viggiano (eu tenho os mapas).
                     
Desta forma, não procede o que sugere Antonio Cândido sobre o livro Grande Sertão: Veredas, ou seja, que a geografia do livro tem caráter mítico e simbólico. Essa interpretação do mestre parece desmentida pelos mapas de Alan Viggiano, que seguiu minuciosamente pelo sertão o roteiro de Riobaldo, desde a barra do Urucuia até o combate final do Paredão, passando por sítios misteriosos como as Veredas Mortas. Em suma, a peregrinação dos jagunços teria seguido o mesmo roteiro das andanças de Guimarães Rosa pelo sertão.                  

A questão que se coloca, no que se refere especialmente a paisagem, é como essas duas realidades se interpenetram, para constituírem um outro universo.


Ensaio escrito por Getulio Cardozo, que, além de poeta, é um apaixonado pela obra de Guimarães Rosa. É autor de diversos títulos de poesia. Dentre eles: “Rumores Dormidos” e “Cadernos Judiados”.

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