sábado, 22 de janeiro de 2011

FERRÉZ, O CRONISTA DE UM TEMPO RUIM


Rafael Martins
 
É difícil definir Ferréz enquanto escritor. Dizer que seus textos possuem um estilo seco e ágil seria afirmar uma verdade, mas reduziria a complexidade do seu ofício.

Engajado em dar voz à classe a qual pertence, sua caminhada transcende a atividade literária. Cito, como exemplo, a visita que fez a cidade de Mococa em novembro de 2010, no dia da Consciência Negra. Além de suas viagens pelo imenso “Brasil periferia” (termo que ele mesmo usa), o autor desenvolve projetos sociais em algumas localidades da cidade de São Paulo, inclusive no Capão Redondo, bairro onde vive até hoje.

É como se em Ferréz a face do ativista social se fundisse à do escritor. Impossível esboçar-lhe o perfil com a primeira parte dissociada da outra. Seus romances “Capão Pecado” e “Manual Prático do Ódio” descrevem, com realismo, um mundo amplo e complexo, que muitas vezes o próprio morador da periferia não entende, embora faça parte dele.

Outra oportunidade de também aproximar-se do autor é obra o “Cronista de um Tempo Ruim”. Trata-se de uma compilação de crônicas publicadas em jornais e revistas. Dentre as revistas está a “Caros Amigos”, onde escreveu por dez anos. Ao observar-se com mais atenção estes textos, tem-se noção da visão aguda do escritor em relação ao meio que o cerca.

Podemos comprovar a afirmação anterior ao lermos a crônica “SPPCC”. Nela Ferréz antecipou aos seus leitores, de forma incisiva, os acontecimentos que pararam São Paulo em maio de 2006, quando o PCC e a polícia se confrontaram. E, ao Governador, ele emitiu o alerta: “Cuidado com a bandeira, dr. Geraldo, de olho na presidência e não olhando nitidamente para ela, você pode acordar um dia e ler: SPPCC”. E aqui vale questionar-se se os doutores em geografia humana que escrevem para os grandes jornais do Estado também tiveram a percepção do que estaria por vir.

Já a ocorrência do episódio antevisto ficou registrada em “Meu Dia na Guerra (ou: vamos atirar nos entregadores de pizza)”, crônica que denuncia não apenas o confronto entre membros da facção com policiais, mas chacinas de pessoas inocentes e outras mortes gratuitas de trabalhadores que retornavam para suas casas.

“Caixinhas, todos somos separados em caixinhas, mas a pergunta é: quem embala tudo isso?” O “Cronista de um Tempo Ruim” foi lançando em 2009, entretanto, depois de vermos o “filme” do combate ao tráfico no Rio de Janeiro exibido pelas grandes emissoras de televisão e que teve início em novembro de 2010, poderíamos recorrer à mesma pergunta. Ninguém viu os inflamados comentaristas das mesmas emissoras questionarem-se a respeito. Aqueles que “embalaram tudo isso” não tiveram suas mansões invadidas nem pelo BOPE nem pelas câmeras de TV.

Encontramos dor, pessimismo e denúncia nas crônicas de Ferréz, mas também beleza e esperança contrastando com a tragicidade. São relatos de sua caminhada com amigos (alguns ficaram pelo caminho), o prazer de ler Hermann Hesse, ou até mesmo a aventura de se construir uma biblioteca onde se parecia impossível.

Num primeiro contato, a literatura de Ferréz pode causar certo estranhamento ao leitor acostumado com a cartilha das academias. De fato, talvez nem seja esta a intenção do autor, pois seu objetivo é escrever àqueles que de alguma forma estão à margem do “grande mercado”. E se seus livros rompem fronteiras bairristas, chegando ao ponto de serem traduzidos para outras línguas, é porque o autor tem coisas relevantes a dizer.  Acrescente-se a sua arte a isto.




Ilustração a nanquim por Getulio Cardozo



Artigo e ilustração publicados no jornal Democrata (São José do Rio Pardo, 22 de janeiro de 2011).
A ilustração é de Getulio Cardozo, que gentilmente autorizou sua publicação.

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