quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

O CADÁVER DE DEDALUS


Getulio Cardozo

É o que aquele doido do irmão mais novo dizia: nas carnes podres de Dedalus nasciam rubras plantinhas. Nos pés do cadáver filamentos brilhantes que ofuscavam seus olhos. Não era caso de se pensar, pois o irmão era doidinho mesmo. Aos doze anos ainda não aprendera a ler e acordava assustado gritando: “a vovó! A vovó!” Aquilo sim dava medo, pois a avó falecera há poucos meses. Mas Dedalus nunca ouvira falar nesse sujeito, nem ninguém conhecia. A psicóloga sacudia a cabeça sorrindo e dizia para eles se acalmarem, pois o tratamento ia bem, era preciso paciência.

Pelo que dava a entender do que o irmão dizia os pêlos do corpo do defunto transformavam-se em plantinhas, em filamentos mergulhados no limbo e o seu sono era uma espécie de lodo, um mergulho apenas na morte, uma emoção forte ao transcender o tempo. Era o que a moça escrevia com rapidez em seu diário, como se a caneta fosse uma esfera ou animal que fosse cagando tinta na folha em branco. E ele repetia com os olhos fixos no chão, escancarando a boca, procurando um ritmo para descrever os filamentos de ouro, como se de dentro de si viesse alguém implorando para chegar até a moça e suplicar a ela que olhasse por um instante, olhasse, e depois estendesse as mãos até onde os pêlos cresciam e deixasse ali o seu hálito, seu êxtase, sem nenhum peso ou interdição, sem que o pecado a afugentasse  ou provocasse medo. A irmã fingia de tola e perguntava se Dedalus aparecia no espelho, pois no fundo ela sentia medo, ainda mais que a mãe dava aulas e só chegava onze da noite. Às vezes demorava até mais tarde. Ela ficava vendo TV para não pensar nessas coisas. Ouvia ruídos na casa, mas sabia que era um gato ou qualquer outra coisa. Era tudo invenção da cabeça dele.
           
Uma tarde resolveu averiguar o porão da casa. Sabia que era bobagem ( completara dezoito anos dois meses atrás ), mas não custava nada verificar. Mesmo porque... sua mão ficaria totalmente livre para escrever. Sentia vontade de se descuidar, de aviltar a rotina da casa. Apenas um lençol velho protegia seu corpo. Soltara os cabelos. Permitindo assim que Dedalus também se soltasse daquelas cordas da morte, do grande poder que fere de morte o corpo. Talvez a solidão, o fato de estar um pouco deprimida, levava ela a pensar essas coisas - assim pensava. Não se divertia como as outras meninas, nem tivera tempo de namorar, pois tinha que olhar o irmão. No fundo sentia-se injustiçada, levando uma vida que não pedira a Deus. A mãe havia se separado do pai há quase dois anos e desde então falava pouco, quase não parava em casa. Dizia que não aguentava mais viver naquela casa e só não mudava porque moravam perto do centro.

No diário as palavras falavam por ela, escapavam por entre as brechas do pecado, como plantas, fios de ouro, pêlos. E aquele ser intangível falava de um único dia, pois tudo ali começara e terminara. A mão de Dinha – era esse o seu nome para os íntimos – tinha desejos, odores, movia-se como um peixe, um peixe circulando uma ilha, desfrutando do banquete que é o seu próprio corpo ou o corpo de Circe, Penélope e...de repente mordisca a mão de Dinha afeita a lavar louças, pegar na vassoura, limpar a bunda do irmão, mas no vasto oceano não se distingue um corpo e uma ilha, não devido a cegueira, mas devido a embriagues do vinho, o manto de Ulisses nos olhos, tontura do amor de Penélope, o reflexo das galáxias na vastidão do grande oceano, e por isso a mão de Dinha procurava aqueles pêlos em meio ao azul e o amarelo ouro, o manto para estender atrás de si e realçar a sua nudez, mas temia pois ali estava o varal de arame com as roupas molhadas, o porão, o gato, o sol tão forte, ela mesma estava ali, ela que precisava de um namorado logo, havia até comentado isso com a mãe que sempre lacônica respondia “é mesmo...” Mesmo as palavras eram seres vivos, incômodos, como a mãe, tão sensíveis as preocupações diárias... E ela não tinha o que oferecer, nenhum banquete, nem vinho, a imensa multidão numa grande cidade qualquer alvoroçava-se como um formigueiro, como ela nem pedia nada, tecendo seu manto para o tempo passar, fio a fio o tempo passava, no trabalho insano das formigas, lavar, passar, dormir e se o grande mar estava ali, se Circe estava ali, eram cegos, cegos, tudo breu, apenas quando um corpo apodrecia, desfazia-se em bruma, em filamentos de ouro que brotavam na ilha aos pés de Circe, pontilhava de luz a cara do navegador, apenas quando sua alma deixava-se levar por Circe e o olho preso por uma linha numa folha caia na água ou ela, Dinha, perdia a consciência para virar um inseto azul, aí sim, mas havia a força de gravidade da terra, os seus sapatos presos ao chão, o cérebro tão pequeno, a voz tão distinta com as pessoas, ela tão educada, comedida nos gestos, caminhando com cuidado à noite para não despertar o irmão, sem malícia, “menina pura”- diziam algumas pessoas – realmente, realmente. Nunca teve um namorado. Quase nem aparece na janela. Menina meiga. Tão cândida com Circe, temerosa do mar, cuidadosa com aqueles fios de ouro, namoradinha de Ulisses, princezinha.


Conto de Getulio Cardozo, que gentilmente autorizou sua publicação no Margem Plural.

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